Jornal DR1

81 anos da morte de Freud – que não sepultemos a psicanálise

No dia 23 de setembro de 2020, completa-se 81 anos da morte de Freud.  Não há dúvidas sobre sua contribuição ímpar para a compreensão do homem e de seu psiquismo. Há mais de 100 anos, desde a invenção da psicanálise, não é possível pensar o mundo sem seus conceitos e sem as contribuições que o tratamento psicanalítico deu a inúmeros sujeitos e grupos sociais.

O ato revolucionário de Freud foi a escuta, sua coragem em ouvir Anna O. quando ela lhe pede que a deixasse falar. Falou-se, fala-se e se seguirá falando. Antes de Freud também se falava. Falava-se a padres, a amigos, a parentes… Então, para que haja efeitos psicanalíticos, não basta que se fale, é necessária a especificidade da escuta analítica.

Retomemos o Projeto para uma psicologia científica (1895): nele Freud esboça o funcionamento neuronal e propõe a ideia de pulsão localizada entre o psíquico e o somático, como é possível compreender a posteriori.

Por que Freud escreve seus Estudos sobre a Histeria (1895)? Passados mais de 125 anos, podemos pensar que foi para que a experiência pudesse ser, futuramente, transmitida. Restringir a resposta a essa alternativa, ou mesmo pô-la em primeiro lugar, é simplório e localiza os futuros analistas no centro do interesse freudiano, empurrando para as beiradas aquele que é escutado. Freud escreve esses casos como tentativa de formalizá-los, como intento de compreender melhor o que escuta, escreve para dialogar com a comunidade que lhe circunda.

Em A interpretação dos sonhos (1900), afirma que o sonho é realização de desejo. Frase célebre que, de tão conhecida, corre o risco de perder sua potência. O desejo está ali onde não penso – tese que repete logo a seguir, em Psicopatologia da vida cotidiana (1901). No texto Três ensaios sobre a sexualidade (1905), descreve o processo de erotização de determinadas zonas do corpo e aponta algumas consequências. Enfim, trabalha a intersecção psíquico e somático, não os separa.

Estamos em 2020. O que significa hoje essa descoberta freudiana, a pulsão constitutiva tanto do somático quanto do psíquico? Sob a ameaça do vírus, fechamos nossos consultórios e aderimos maciçamente ao atendimento online. Era necessário nos proteger do risco. Mas até quando? Considerando que o encontro com o outro nunca será seguro, é possível renunciar a correr riscos?

Não nos apressemos, retornemos a Freud. Em Psicologia das massas e análise do eu (1921), o agora já nomeado pai da psicanálise aponta “a falta de liberdade do indivíduo num grupo”. Anos mais tarde, redige O mal-estar na civilização (1930) e reflete sobre o desaparecimento do sujeito quando diluído no fenômeno da psicologia de grupo. Estamos nós, psicanalistas, imersos nessa posição? Ao aderir ferreamente à verdade única, na qual a falta não tem lugar, nos fazemos prisioneiros do discurso que nos apraz? Resistir em retomar os atendimentos presenciais, sentar no conforto doméstico a atender em pijamas (como se gabam alguns), não é acomodar-se à certeza que deslizamos em nossas telas como verdade única?

Desde o Projeto, sabe-se que a pulsão é corpo, que a psicanálise se faz no encontro de corpos, na prática clínica, na análise pessoal, na supervisão e na formação do analista com seus pares. Onde se localiza hoje a nossa pulsão? Está ela aprisionada à teletela orwelliana, a enterramos nas valas abertas, como uma das vítimas da COVID-19? Que nessa data não façamos dos textos fundamentais de Freud mais uma vítima de nosso medo e covardia, que possamos sustentar essa peste chamada psicanálise

*Fernanda Zacharewicz é psicanalista, doutora em Psicologia Social pela PUC/SP *

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