Com metodologia própria e foco em crianças traumatizadas pela violência urbana, a iniciativa criada por Yvonne Bezerra de Mello já impactou mais de 130 mil jovens no Rio de Janeiro.
No meio do Complexo da Maré, uma das maiores e mais perigosas favelas do Rio de Janeiro, o Projeto Uerê é um símbolo de resistência, educação e reconstrução. Criado em 1998 pela educadora e ativista Yvonne Bezerra de Mello, o projeto nasceu da dor, mas floresceu como resposta à tragédia e à negligência social. O embrião do Uerê foi a chamada “Escola sem Portas nem Janelas”, nos anos 1980, que acolhia crianças em situação de rua no centro do Rio. A partir da Chacina da Candelária, em 1993, quando oito jovens atendidos por Yvonne foram assassinados, ela decidiu criar um modelo mais estruturado e duradouro, com sede dentro de uma comunidade marcada pela exclusão: a Baixa do Sapateiro, na Maré.
Hoje, o Projeto Uerê atende cerca de 270 crianças e adolescentes entre 5 e 18 anos por ano, oferecendo não apenas ensino básico, mas uma abordagem terapêutica e pedagógica única, voltada para o enfrentamento das marcas deixadas pela violência urbana e pela pobreza extrema. Ao longo de mais de duas décadas, estima-se que o projeto tenha beneficiado direta ou indiretamente mais de 130 mil jovens.
O diferencial do Uerê está na Pedagogia Uerê-Mello, metodologia criada pela própria fundadora, baseada em princípios da neurociência, da neuroplasticidade e da psicopedagogia. Essa abordagem foi pensada especialmente para crianças que sofreram traumas crônicos — como violência doméstica, abuso, perdas familiares ou exposição constante a tiroteios — e cujas capacidades cognitivas foram afetadas por esses eventos. As aulas são organizadas em blocos curtos, de até 20 minutos, focadas majoritariamente em estímulos orais. A proposta é desenvolver a atenção, o raciocínio lógico, a memória e a linguagem oral de maneira adaptada ao tempo de concentração dos alunos.
O ambiente escolar também é estruturado para garantir segurança emocional e física. Há escuta ativa, afeto e respeito pelos limites e ritmos de cada estudante. As crianças recebem reforço alimentar, apoio psicológico e participam de atividades artísticas e esportivas que contribuem para a reconstrução de suas identidades e autoestima.
O reconhecimento da metodologia ultrapassou as fronteiras da Maré. A Pedagogia Uerê-Mello já foi adotada em escolas e abrigos para refugiados em países como Líbano, Congo e Angola, sempre aplicada em contextos de alta vulnerabilidade. No Brasil, o desafio do projeto é manter a continuidade frente à escassez de recursos. Sustentado principalmente por doações e parcerias, feitas através do site projetourere.org.br, o projeto se vê constantemente com a necessidade de mobilizar apoio para seguir operando.
Em um cenário onde a educação pública ainda falha em atender os mais vulneráveis, o Uerê prova que é possível oferecer ensino de qualidade, com respeito, cuidado e ciência, mesmo nos contextos mais difíceis.