Um artista à frente do tempo, um retrato vivo de quem transformou o palco em espelho da alma nacional
Poucos nomes na música brasileira despertam tanto fascínio, respeito e curiosidade quanto Ney Matogrosso. Aos 83 anos, o cantor, ator e ícone da liberdade artística segue desafiando convenções e encantando gerações com sua presença magnética. Agora, sua trajetória ganha novas luzes com o filme “Homem com H”, dirigido por Esmir Filho, que estreou recentemente nos cinemas e já é apontado como um dos documentários musicais mais impactantes dos últimos anos.
A produção mistura imagens de arquivo, registros de shows e depoimentos inéditos para construir um retrato íntimo de Ney — o homem por trás do mito. Com estética refinada e narrativa sensível, o longa revela o artista em sua totalidade: o corpo performático, a mente inquieta e o espírito livre que enfrentou censuras, quebrou tabus e redefiniu o que significa ser brasileiro.
Do Secos & Molhados ao símbolo de uma geração
A fama de Ney Matogrosso começou em 1973, quando surgiu à frente do grupo Secos & Molhados, com maquiagem tribal, figurinos ousados e uma voz aguda e inconfundível que chocou e seduziu o país. Em plena ditadura militar, a banda uniu rock, MPB e poesia, tornando-se um símbolo de resistência e liberdade.
Quando partiu para carreira solo, Ney mostrou que seu talento ia muito além da estética provocadora. Em discos como Feitiço, O Pescador de Pérolas e Inclassificáveis, ele explorou sonoridades diversas e interpretou compositores como Chico Buarque, Cazuza, Caetano Veloso e Itamar Assumpção, provando ser um intérprete de alma múltipla — capaz de ser delicado e explosivo na mesma canção.
“Eu nunca pensei em chocar. Eu apenas sou assim”, diz Ney em um dos momentos mais fortes do filme, resumindo a essência de um artista que fez da autenticidade sua arma mais poderosa.
“Homem com H”: o retrato de uma liberdade sem molduras
O documentário de Esmir Filho é mais que uma biografia: é uma imersão poética na mente e no corpo de Ney Matogrosso. O título, inspirado na canção icônica escrita por Antônio Barros, reflete a ambiguidade e a força de um homem que se recusa a caber em qualquer rótulo.
O filme costura imagens de bastidores, performances históricas e reflexões pessoais, em um diálogo constante entre o passado e o presente. Ney surge sem máscaras, falando de arte, política, envelhecimento, sexualidade e espiritualidade — temas que sempre atravessaram sua obra e sua vida.
Esmir Filho, que já dirigiu “Verlust” e “Os Famosos e os Duendes da Morte”, constrói uma narrativa envolvente e sensorial, com ritmo musical e visual quase hipnótico. O resultado é um retrato de coragem e vulnerabilidade, onde o artista é mostrado não apenas como ídolo, mas como ser humano que aprendeu a viver intensamente cada instante.
O legado de uma voz que não se cala
Ney Matogrosso é mais que um cantor — é uma entidade cultural, um símbolo de liberdade e pluralidade. Em tempos de conservadorismo e intolerância, sua figura continua relevante e inspiradora. Ele fala sobre o corpo, o desejo e a arte com a mesma naturalidade com que canta o amor e a dor.
O filme “Homem com H” chega, portanto, como um tributo e um convite: revisitar Ney é redescobrir o Brasil em toda a sua complexidade, beleza e contradição. É lembrar que a arte ainda pode ser um ato político e um gesto de amor.
“Eu sou o que sou. E o que eu sou muda sempre”, diz Ney no encerramento do longa. Uma frase que sintetiza o espírito de quem, com coragem e poesia, transformou a própria vida em obra de arte.