Jornal DR1

Ars Gratia Artis: Poder

PODER BANNER

No charmosíssimo Atelier de Alexandre Mello – uma moradia de arte – assisti à peça Poder, no alto das Laranjeiras. Dirigida e roteirizada pelo próprio dono do espaço, a montagem destaca-se pela construção textual minuciosa, o trabalho preciso de movimento e a exploração integral de cada centímetro do ambiente. As atuações, que partem de um conceito sólido, completam o encanto da experiência com sutileza e força.

É comum atores recitarem Shakespeare como se estivessem simplesmente ‘decorando o texto’; essa postura revela a falta de ponto de partida conceitual, deixando a fala frágil e rasa. Em ‘Poder’, entretanto, a ideia de que Shakespeare superou a tragédia grega ao conferir consciência ao personagem – inaugurando o homem moderno no palco – aparece cristalina, servindo de base para a atuação. A peça denuncia ainda o poder exercido contra a mulher e tudo o que ela simboliza; as três bruxas, ecos da ancestral Hécate, funcionam como contraponto à divindade trina masculina cristã, reforçando a tensão entre matriarcado oculto e patriarcado institucional.

A metalinguagem opera de forma magistral, sobrepondo tempos e lugares em camadas de “peça dentro da peça”. Cada mudança – por vezes quase imperceptível – traz à cena um acontecimento contemporâneo revestido da máscara shakespeariana, provocando na plateia a percepção de que todas as realidades são ilusões construídas… não sem humor, a propósito. Essa fluidez temporal revela a magia única do teatro: ele desestabiliza certezas e desperta a consciência sobre a fragilidade dos nossos próprios discursos de poder.

O autor não se limita a citar Shakespeare; ele o reinventa, inserindo o fantasma do dramaturgo em diálogos atuais que questionam quem realmente detém o cetro do poder. O efeito é como um espelho quebrado: o público reconhece fragmentos de si mesmo nas falhas dos personagens e entende que a luta pelo controle é tão atemporal quanto as tragédias elisabetanas.

Por fim, as interpretações transcendem a mera atuação; são atos de revelação. A entrega visceral das vozes, o peso das pausas e a alternância entre vulnerabilidade e tirania conferem à peça uma densidade quase física. Quando Hamlet — ora sábio, ora delirante — declama seu solilóquio, o vento que entra pelas janelas parece responder ao seu clamor; e somos a voz e o sonho escravos dessas palavras, buscando entender o que há nelas de aterrorizante e sublime: ‘A vida não passa de uma sombra que caminha, um pobre ator que se pavoneia e se irrita por uma hora no palco e depois não é mais ouvido: é uma história contada por um idiota, cheia de som e fúria, que nada significa’.

Confira também

Nosso canal

Error 403 The request cannot be completed because you have exceeded your quota. : quotaExceeded