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Manto da Apresentação, de Arthur Bispo do Rosario, recebe restauro e participa de exposições com demais obras do artista pela Europa 

A obra mais emblemática de Bispo segue na cidade de Lisboa até fevereiro de 2026 e Barcelona recebe Grande Veleiro, Semblantes e Condecorações em seu Museu de Arte Contemporânea 

A obra mais emblemática de um dos maiores artistas brasileiros, Arthur Bispo do Rosario, o “Manto da Apresentação”, recebe os primeiros procedimentos para o início de seu restauro e passa a integrar a exposição ”Complexo Brasil”, em Lisboa. A mostra é a maior já realizada sobre o Brasil em Portugal e quem a recebe é a Fundação Calouste Gulbenkian, instituição responsável pelo investimento do restauro, reunindo outros nomes importantes, como Cândido Portinari e Alfredo Volpi.


A obra recebeu procedimentos iniciais de conservação para que pudesse participar da Mostra e, no retorno ao Brasil, em fevereiro de 2026, volta ao laboratório do Museu Bispo do Rosario para dar prosseguimento à primeira etapa do restauro. Planejamento técnico e organização dos materiais; registro fotográfico, mapeamento da obra, levantamento de dados (análise morfológica e estrutural do suporte têxtil), higienização e testes de solubilidade estão entre as atividades que serão realizadas com a chegada do ”Manto”. O aporte gira em torno de R$115.000.00 e a intervenção tem como finalidade estabilizar e preservar a integridade físico-química do “Manto da Apresentação”. O procedimento consiste na remoção controlada de sujidades e contaminantes superficiais, minimizando riscos de degradação e assegurando a estabilidade estrutural e estética da obra.
 

O “Manto da Apresentação” é confeccionado através de representações de objetos bordados, franjas, cordas e palavras – com tantas curiosidades acerca da obra, outro destaque fica em sua parte interna: o registro do nome de diversas mulheres e, entre eles, o de Dra. Nise da Silveira. Bispo acreditava com toda a sua intensidade que sua missão era apresentar a Terra a Deus e recriar um novo mundo sem miséria, doenças ou sofrimento. O artista, que teve como linguagem uma perspectiva singular de recriação do mundo através de seu próprio olhar, hoje é reverenciado por sua forma única de reorganizar e reelaborar tudo à sua volta. Para a museóloga do Museu Bispo do Rosario, Márcia Nascimento, do ponto de vista ético, vai ser devolvida ao “Manto” a sua integridade. ”Essa obra foi produzida dentro de um manicômio enquanto Bispo seguia com sua produção cada vez mais efervescente. O ‘Manto’, no cenário global da arte, é considerado uma obra extremamente significativa. O Bispo é um artista brasileiro, negro e está ganhando cada vez mais notoriedade internacional. Nós temos esse patrimônio, o ‘Manto da Apresentação’, tombado em duas esferas, no IPHAN e no INEPAC, e isso pode dimensionar o tamanho da importância desse artista e de suas obras”, destaca Márcia.

A museóloga revela, ainda, como foi presenciar de perto a expectativa pela chegada da obra na própria Fundação Calouste durante a montagem de ‘Complexo Brasil’. ”Foi muito emocionante ver o quanto Bispo era esperado para integrar esta exposição, o quanto era relevante ter Bispo ali compondo aquela narrativa. Em meio ao grande desafio de courier, representando o Museu, me senti feliz e honrada ao ver a obra de Bispo em lugar de destaque – onde ele merece. O Museu segue cumprindo, na integridade, seu papel de salvaguardar o ‘Manto’ com toda a relevância e valor que ele possui’, afirma a museóloga responsável por acompanhar a peça no exterior. 

Uma das principais obras de Bispo do Rosario fica até 16 de fevereiro de 2026 em terras lusitanas, quando termina a ”Complexo Brasil”.  

Bispo em circuito Ibérico

Além de Portugal, o talento de Bispo também poderá ser apreciado na Espanha. Grande Veleiro, (Fardão) Semblantes e (Fardão) Condecorações são as três obras de Arthur Bispo do Rosario que estão, atualmente, no Museu de Arte Contemporânea de Barcelona, compondo a exposição “Projetando um Planeta Negro: A Arte e a Cultura da Pan-África”. A exposição se propõe a traçar um panorama histórico do movimento Panafricano, reunindo aproximadamente 350 obras das Américas, Europa e África, produzidas a partir de 1920. As obras de Arthur Bispo do Rosario, relacionadas ao contexto náutico, representam um navegar próprio do artista a partir de suas criações diretamente ligadas a esse universo. É um movimento contrário à travessia forçada do Atlântico que causou sofrimento imensurável a tantas pessoas negras e ceifou a vida de muitas outras. As obras de Bispo abrem os caminhos na Mostra, logo nas primeiras salas expositivas, traçando relações com a fabulação de outros mapas e geopolíticas, onde não há fronteiras e nem obstáculos para a criação de uma comunidade negra global. 

Grande Veleiro é a maior e mais importante composição náutica de Arthur Bispo do Rosario. Composta por uma diversidade de materiais como tecido, papelão e correntes com técnicas como amarração, colagem e bordado, a obra tem uma importância simbólica muito grande na trajetória do artista, que foi marinheiro por quase uma década, antes do processo de institucionalização psiquiátrica. O (Fardão) Condecorações é composto por dezenas de medalhas e ornamentos, enquanto o (Fardão) Semblantes é repleto de adornos e arabescos bordados, bem minuciosos. Ambas as vestes, além de evidenciarem uma habilidade manual excepcional, reúnem elementos escritos da trajetória de vida de Bispo, com referências à sua vida na Marinha, nas instituições psiquiátricas e de importantes tradições populares da região onde nasceu, em Sergipe.

A curadora do Museu Bispo do Rosario, Carolina Rodrigues, que também acompanhou parte da pré-produção no Museu de arte Contemporânea de Barcelona, conta como surgiu o convite para participar do Projeto e a importância do artista brasileiro na cena. ”O Brasil é o segundo país mais representado na exposição, o que faz sentido se considerarmos que é o país com a maior população negra fora do continente africano. Acredito que dessa forma, a escolha da curadoria em ter Arthur Bispo do Rosario seria inevitável, uma vez que trata-se de um acervo de valor inestimável, tombado como Patrimônio Cultural Brasileiro. Um dos curadores da mostra, Matthew Wiltkovsky, teve a oportunidade de visitar a exposição individual de Bispo em Nova Iorque no início de 2023 e, logo nesse momento, solicitou o empréstimo das três obras para a exposição. Foi uma negociação longa até que as obras retornassem aos Estados Unidos em dezembro de 2024, quando a mostra inaugurou no Art Institute of Chicago”, relembra a curadora geral do Museu.

Ainda segundo Carolina, as discussões propostas pela exposição ganham enorme profundidade com a presença das obras de Bispo. Além do seu valor estético e poético, também abrem a oportunidade de trazer discussões muito importantes para a sociedade contemporânea, como a luta antimanicomial, por exemplo. ”A trajetória de Bispo enquanto homem negro, nordestino, que desempenhou diversas funções sociais até ser privado de sua liberdade pela política manicomial, é representativa da situação de várias populações negras não só no Brasil, mas também no mundo. Seu fazer artístico desempenhou diversos movimentos de liberdade, tanto para Bispo em vida, quanto na manutenção da memória de seu legado após sua partida. É importante que essas questões sejam amplamente debatidas ao redor do mundo, e a obra contribui para que isso seja feito. Também é muito importante fazer parte de um projeto afro-centrado, uma vez que reafirma a identidade negra de Bispo na comunidade artística, que por muito tempo ignorou sua racialidade. A presença da obra nessas instituições também é importante para oportunizar parcerias e a visibilidade do trabalho do Museu Bispo do Rosario na rede internacional de museus, proporcionando a difusão do nosso trabalho nos campos da curadoria, educação, pesquisa e conservação, além de promover importantes intercâmbios. O processo de empréstimo internacional é uma grande empreitada, que mobiliza diversos agentes políticos e culturais. É fundamental ressaltar, portanto, a relevância da obra nas relações diplomáticas entre os países envolvidos, por se tratar de um patrimônio nacional”, conclui.

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