Quando o cineasta André Canto decidiu produzir um filme com a temática da AIDS, o aplaudido ‘Carta Para Além dos Muros’, a inspiração veio dele mesmo. “Foi uma questão totalmente pessoal. Eu era menino na época em que explodiu a epidemia, nos anos 80. Tive muito medo, não havia informação. Para mim, o simples fato de eu ser um jovem gay já me faria portador do HIV. Essa era uma questão; a outra era o preconceito. O pânico se instaurou em toda uma geração. Eu quis abordar o modo como o surgimento da AIDS afetou a minha vida e as de inúmeras pessoas”, conta.
O documentário, já em exibição nas salas de cinema pelo Brasil, tem uma hora e meia de duração e enfoca a trajetória do HIV/AIDS através de imagens de arquivos e depoimentos de 36 pessoas, entre ativistas, médicos e pessoas que conviveram com algum portador do HIV ou que, até hoje, graças ao tratamento antirretroviral, o chamado ‘coquetel de remédios’, vivem com o vírus. A narrativa é costurada com o depoimento de um jovem, com nome fictício de Caio, em referência ao escritor gaúcho Caio Fernando Abreu.
Foram dois anos de produção e mais de 90 entrevistados. “Foi muito difícil cortar depoimentos fortes e de gente de peso, mas eu queria um filme que despertasse o interesse do público em geral. Então precisava ter um tempo mais curto. A comunidade que lida com essa realidade veria tranquilamente três horas de filme. Mas o objetivo era ampliar ao máximo o público alvo”, conta André.
Entre os nomes que dão depoimento no filme, Lucinha Araújo, mãe do cantor Cazuza, ex-ministros da saúde José Serra e José Gomes Temporão; os médicos Dráuzio Varella, Ricardo Tapajós, Ricardo Vasconcelos, Rosana Del Bianco e a infectologista Márcia Rachid, que comentou sobre a importância do documentário, na luta por informação e contra os preconceitos que ainda persiste. “Falar de HIV hoje tem o mesmo mistério de 35 anos atrás. Não pode!”, declarou Márcia.
Veriano Terto de Souza, da ABIA (Foto: Divulgação)
VerianoTerto de Souza, vice-presidente da ABIA (Associação Brasileira Interdisciplinar da AIDS) também está no filme e chama a atenção para, em meio a tanta informação circulando, em meios como a internet, o fato de o número de jovens infectados crescer assustadoramente no Brasil. “Enquanto que países como Cuba conseguiram erradicar, no Brasil cresce em progressão geométrica. Assim como o número e infectados com a sífilis. O silêncio é o pior inimigo, nesses tempos em que o conservadorismo acaba criando uma cortina de fumaça em nome de uma suposta ‘proteção’ a valores familiares, mas que só prejudica a prevenção”, defende.
De acordo com Veriano, o Brasil está em terceiro lugar nas Américas em número de novos casos de soropositivos, segundo dados da Unaids (programa das Nações Unidas para HIV/AIDS). De acordo com o Boletim Epidemiológico do Ministério da Saúde, de junho de 1980 a junho de 2018, foram identificados 926.742 casos de AIDS no Brasil. O país tem registrado, anualmente, uma média de 40 mil novos casos de AIDS nos últimos cinco anos. O número anual de casos vem diminuindo desde 2013, mas a incidência aumentou entre os jovens de 15 a 19 anos e de 20 a 24 anos, nos últimos 10 anos.
“Diante disso, a sociedade civil tem se mobilizado na luta por ações mais efetivas do poder público. Onde estão as campanhas de conscientização? Em nível municipal nem existem. É preciso dar nome aos bois, falar de AIDS, sífilis, HPV… Abordar tudo isso também na escola. A garotada de 13, 14 anos, ao iniciar sua sexualidade precisa ter acesso a informações corretas, atualizadas. A mobilização de todos é necessária e urgente em busca de soluções”, conclui.
Jogo rápido com André Canto
André Canto (Foto: Andréia Machado)
Que dados te chamaram a atenção durante as filmagens?
Que a AIDS é uma questão não só de saúde, mas também social e racial… O crescimento de infectados acontece mais entre negros e pardos (23,3 % nos últimos 10 ano, segundo dados do Ministério da Saúde. É assustadora também a situação em que vivem os infectados em presídios e dos moradores de rua.
No que o Brasil poderia melhorar em termos de prevenção?
Hoje o medo não pode nortear as ações de prevenção, como na recente campanha do Ministério da Saúde. Antes do de 1996, do ‘coquetel de medicamentos’ existir, ter HIV era uma sentença de morte. Hoje não mais. Há medicamentos, mas a informação tem que ser a melhor arma.
O filme terá desdobramentos?
Sim, na pegada de que difundir informação tem um valor fundamental, o filme vai originar uma série, já em produção, possivelmente para 2020, e um livro. A ideia é seguir exibindo o documentário em escolas e universidades, com palestras pelo Brasil. O trabalho não pode parar.