Por Sandro Barros
O país vive uma de suas piores crises econômicas e cerca de 13 milhões de pessoas estão desempregadas, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o que representa, aproximadamente, 12,4% da população. Mas não se engane, pois esse número é muito maior, já que o IBGE não considera em seu cálculo os trabalhadores informais ou mesmo aqueles que já desistiram de buscar empregos.
Com essa realidade desesperadora, as pessoas buscam alternativas de trabalho, seja para garantir alguma forma de sustento ou para complementar a renda. Desse cenário, com a pessoas precisando ganhar dinheiro para sobreviver, se fortaleceu o que ficou conhecido como uberização do trabalho. Esse modelo prevê um estilo mais informal, flexível e por demanda. Em outras palavras, uma nova forma das relações de trabalho, onde surgem os trabalhadores de aplicativos (APPs), que corresponde a um gigantesco quadro: atualmente, 5,5 milhões de profissionais estão cadastrados nas plataformas de mobilidade e de entrega de produtos, segundo o Instituto Locomotiva.
Essa relativamente recente forma de se obter renda, seguramente a que mais cresce no Brasil, trouxe consigo uma velha conhecida nossa: a precarização do trabalho. Os trabalhadores de aplicativos não têm assegurados qualquer direito trabalhista, ainda que trabalhem para grandes empresas — a Uber, por exemplo, é estadunidense e está presente em diversos países. E muitas e muitas vezes trabalham em horários prejudiciais à saúde e arcam com todos os riscos da atividade profissional. Se ficam doentes e não podem exercer suas atividades, por exemplo, encontram-se completamente desamparados pela legislação.
Experiências do dia a dia
João Marcos, de 22 anos, mora em Deodoro, na Zona Oeste carioca, e está desempregado há dois meses. Seu sonho é ser militar e para isso ele está estudando. Como forma de garantir dinheiro para pagar os cursos, ele pedala de segunda a sábado no Centro do Rio de Janeiro fazendo entregas de dois aplicativos. “Trabalho das 10h às 16h, mas quando o movimento está bom saio mais tarde, no máximo às 21h. Recebo toda sexta e dá para ganhar mais que um salário mínimo, às vezes até dois por mês”, diz ele, que confirma que não tem nenhum direito trabalhista assegurado.
Outro exemplo é o de Marco Antonio, que usa a sua própria moto para fazer entregas na vizinha cidade de Niterói. “Trabalhando umas oito, dez horas por dia, dá para tirar tranquilamente R$ 100, R$ 70 no mínimo, por dia. Às vezes o aplicativo paga um bônus, como foi no último carnaval, que, além da corrida, pagou-se mais R$ 4 por entrega. Fazendo entregas cinco dias por semana, incluindo final de semana, dá para receber um dinheiro suficiente para pagar as despesas básicas, sobreviver”, explica ele. “Os horários onde há mais procura pelo serviço são o do almoço, das 11h às 15h, e à noite, quando os clientes retornam aos seus lares, a partir das 18h às 23h.
Como João Marcos, todos precisam investir do próprio bolso para terem acesso ao trabalho. Os gastos vão desde ter o próprio veículo — seja carro, moto ou bicicleta —, maquininha de cartão (no caso das motos e bicicletas) até combustível e seguro (motos e carros). Uma alternativa para reduzir os custos tem sido alugar o veículo, livrando-se assim de despesas extras como as que se têm quando ele é furtado ou roubado. “Fica mais barato e seguro alugar a bicicleta do que usar a minha, que fica em casa. Caso ela seja roubada, tenho que fazer o Boletim de Ocorrência na delegacia e entrar em contato com o proprietário [banco Itaú]. Daí ele cancela o cadastro e é feito outro”, complementa João Marcos.
Busca por soluções coletivas
Para lidar com as dificuldades, os motoristas de aplicativos já estão agindo de forma organizada, somando forças. Buscando soluções coletivas, vem se espalhando em diversas cidades brasileiras os clubes de benefícios, empresas que oferecem aos seus membros produtos e serviços que os motoristas necessitam, com descontos exclusivos e apoio tático de segurança.
“No Rio de Janeiro existem muitas associações, a maioria anônimas, mas não tanto como em São Paulo. No entanto, a Uber não ouve as associações”, conta o motorista Edmilson Souza, fundador da Tamo Junto — Club de Benefícios Para Motorista de Aplicativo (TMJRJ), que presta serviço de assessoria para esse trabalhador. Ele diz que hoje, somente no Rio de Janeiro, existem 500 mil motoristas cadastrados no Uber.
A Tamo Junto oferece vários serviços, como descontos em instalação de GNV, vistorias, assessoria jurídica e contábil, por exemplo. Dispõe também de financiamento de carro e venda do veículo, além de plano de saúde, oficina mecânica e lava jato. E para fazer parte, o trabalhador não paga nada, pois o financiamento é feito pelos lojistas. “Para os nossos parceiros, é importante atenderem um número expressivo de clientes. Com divulgação prioritária pelo WhatsApp, alcançamos grupos com até 250 motoristas. Falando de uns 20 grupos, podemos atingir cerca de 3.500 de pessoas”, esclarece Edmilson. Para os interessados, o telefone da TMJRJ é (21) 96825-1276.
Vínculo empregatício ou não?
A recém-empossada presidente do Tribunal Superior do Trabalho (TST), ministra Cristina Peduzzi, disse, em entrevista ao jornal O Globo no dia 25 de fevereiro, que o governo precisará fazer uma nova reforma trabalhista para incluir na legislação novas modalidades de trabalho exercidas por meio das plataformas digitais.
A ministra alega que falta uma norma jurídica que proteja os prestadores de serviço de aplicativos. Em caso de acidente, eles têm apenas a cobertura previdenciária. “Mas e a responsabilidade civil dos contratantes? Eles respondem como empregadores ou como simples contratantes?” indagou Cristina, afirmando que essa insegurança jurídica é grande. Até agora, o único caso de aplicativo que chegou ao TST foi um processo envolvendo um motorista de Uber. Julgado em 5 de fevereiro, a Quinta Turma do tribunal decidiu que não há vínculo empregatício. No entanto, isso não é um posicionamento definitivo do TST.
A presidente do TST explicou que juízes decidem de acordo com seus princípios, podendo inclusive contrariar a lei. Isso sem contar a existência de sentenças conflitantes sobre um mesmo tema. “Estamos convivendo com modalidades novas de trabalho por meio das plataformas, onde não temos regras expressas disciplinando essas novas formas de trabalho, onde não só a máquina, mas, sobretudo a tecnologia prepondera”, destacou.
Os sindicatos no Brasil
Em 2017, foi fundado o Sindmaap (Sindicato dos Motoristas Autônomos de Transporte Privado Individual por Aplicativos) no Distrito Federal. No mesmo ano, nasceu em Recife o Simtrapli (Sindicato dos Motoristas de Transporte Privado Individual de Passageiros por Aplicativo do Estado do Pernambuco).
Em outros estados, como Minas Gerais, São Paulo e Bahia, também existem outros sindicatos da categoria. O mais recente no país, fundado em 6 de dezembro de 2019, é o Sindicato dos Trabalhadores e Prestadores de Serviços de Aplicativos de Transporte e de Prestação de Serviços do Espírito Santo (Sintappes). A nova entidade sindical representa ciclistas, motoboys e motoristas.
Ainda que de forma incipiente, os trabalhadores começam a entender que é preciso se organizarem para combater a exploração a qual são submetidos pelas empresas de APPs. Dessa forma, buscam conquistar direitos e melhorar as condições de trabalho. Atuando de forma coletiva sempre é a melhor e mais eficaz alternativa para mudar a realidade.
Uberização do trabalho e luta de classes
Sérgio Domingues, sociólogo e coordenador do Núcleo Piratininga de comunicação
Em 8 de maio de 2019, motoristas que trabalham nas principais empresas de transporte de passageiros por aplicativo,como Uber, Cabify, 99 e Lyft, Realizaram um Dia Internacional por Melhores Condições de Trabalho. Houve manifestações em cidades dos Estados Unidos, Reino Unido, França, Austrália, Nigéria, Quênia, Chile, Brasil, Panamá, Costa Rica e Uruguai.
Foi uma das primeiras manifestações de resistência relacionadas ao fenômeno conhecido como uberização das relações de trabalho. O termo, claro, faz referência ao Uber, famoso aplicativo de compartilhamento de viagens urbanas. Mas também representa aquelas empresas que operam por meio da chamada economia compartilhada.
O conceito de economia compartilhada surgiu como desafio à lógica gananciosa e individualista do livre mercado. Mas, apropriado pela sociedade do consumo, levou à formação de alguns poucos e gigantescos monopólios. Desse modo, a chamada economia compartilhada acabou por se tornar para os trabalhadores de que dela participam apenas mais uma metamorfose da velha “economia do bico”.
Mas outra dimensão muito importante dessa situação é a subjetiva. O trabalhador resiste a reconhecer sua condição de explorado e a lutar contra ela. O grande mito que alimenta a uberização da produção vende um mundo em que consumidores em busca de baixos preços encontram seus interesses atendidos por prestadores de serviços que apenas procuram complementar sua renda. A verdade é que nessa mais recente modalidade de exploração do trabalho humano, o grande perdedor é o “parceiro”, que, em geral, opta pelo “bico” diante da falta de empregos formais. Não é empreendedorismo. É desalento ou desespero, mesmo.
No entanto, nada disso é novidade na história das relações capitalistas de produção. Na uberização do trabalho, consumidores em busca de baixo preço e trabalhadores em situação de desespero muitas vezes são as mesmas pessoas. Mas tais relações ficam escondidas sob a aparência de “eficiência”, “versatilidade” e até “sustentabilidade ecológica”.
A manifestação de maio de 2019 mostrou como já é possível arrancar essas novas viseiras ideológicas impostas pelo capital. Do mesmo modo, no início de fevereiro deste ano, funcionários do Kickstarter, nos Estados Unidos, conseguiram formar um sindicato. A empresa é a maior plataforma de financiamento coletivo da internet e a primeira gigante de tecnologia a ver-se obrigada a aceitar a sindicalização de seus trabalhadores. Certamente, outras lutas semelhantes virão.