Por Claudia Mastrange
Não é à toa que o ator Deo Garcez tem orgulho de sua trajetória. O menino que viveu uma infância pobre em São Luiz do maranhão viu seu sonho virar realidade ao tornar-se um ator nacionalmente reconhecido. Nada foi fácil: ele fez acontecer. Começou a fazer teatro ainda menino e lá se vão mais de 40 anos e muita história para contar. Representatividade também o define, já que procura sempre abordar a temática do racismo em seus trabalhos e há 5 anos encena ‘Luiz Gama ─ Uma Voz pela Liberdade’. O espetáculo conta a trajetória do ex-escravo, jornalista, poeta, político, advogado autodidata, que foi responsável pela libertação de mais de 500 escravos. Deo está em cartaz também com o espetáculo online “Anjo Negro”, baseado no texto de Nelson Rodrigues. Em entrevista ao Diário do Rio, ele fala de como se reinventou na pandemia e o que espera para o país e o mundo em 2021.
Diário do Rio- Quando iniciou o trabalho com Luiz Gama, imaginava esse estrondoso sucesso e essa longevidade do espetáculo?
Deo Garcez – Não imaginava não. Mas de imediato vimos que a aceitação era muito grande e que iríamos fazer esse espetáculo por um bom tempo. Não que fosse vir até aqui, são 5 anos. Sei que continuará a ser feito. Me vejo velhinho de bengala interpretando Luiz Gama (risos). Porque sempre haverá necessidade de se contar a história dele. A importância dele para o Brasil e para o mundo.
– Qual a importância de abordar esse tema para o país e os negros?
Deo Garcez – A peça recupera a importância fundamental, na construção desse país, da luta por direitos, da luta em especial pela libertação dos escravos no Brasil. Espetáculos como esse trazem pra hoje e faz ecoar a voz dos nossos ancestrais negros e negras que foram invisiblizados ao longo da história brasileira. História que é sempre manipulada do ponto de visa do opressor, do colonizador, dos poderosos…. Há tantos heróis e heroínas que precisam ser recuperados, como Esperança Garcia, no Piauí; Negro Cosme, no Maranhão…. Líderes que tiveram importância fundamental na luta pela abolição. Quem os conhece? Quase ninguém.
– O racismo é um mal que nunca se acabará?
Deo Garcez – Não sei se acabará. Mas torço que minimize. O mal sempre vai existir, mas nós, do bem, estamos aí para combatê-lo.. Me sinto péssimo diante de tantos acontecimentos relacionados ao racismo.a matança da população negra dentro e fora do país. É traumático ser negro no Brasil porque as mazelas da escravidão continuam até hoje. Cada 23 minutos um jovem brasileiro entre 12 e 19 anos é assassinado. Nos presídios, mais de 70% da população é negra. As muheres negras são duplamente marginalizadas., discriminadas. É urgente que esse genocídio acabe. É preciso que falarmos uma revolução, no melhor dos sentidos, para acabar com essa crueldade que é o racismo.
– Porque decidiu encarnar o “Anjo Negro”?
Deo Garcez – Decidi encarnar Ismael porque é uma forma diferente de abordar o racismo, na linguagem de Nelson Rodrigues. Fala do auto- preconceito, é bastante polêmico. Meu personagem é capitão do mato de si mesmo. Remete as pessoas que, diante de tanta crueldade, se sentem inferiores e renegam sua própria etnia. Sabemos que existem os “Sérgios camargos” (atual presidente da Fundação Palmares) da vida que renegam sua ancestralidade, seus heróis negros. É atual. Nelson bota o dedo na ferida, não tem meias palavras, fala do pior dos sentimentos e da maldade humana.
– Qual a função do artista na sociedade e no Brasil atual?
Deo Garcez – Além de levar entretenimento, o artista tem uma função educativa muito grande. No sentido de desalienar, politizar as pessoas e a sociedade. No Brasil, além da pandemia e da vulnerabilidade que vivemos, há um momento de negação de direitos, da saúde, da educação, da cultura, das relações exteriores… Nós artistas temos que fomentar esse debate e ver que atitudes políticas possam ser implementadas para que possamos ter direitos iguais, direito à vida.
– São mais de 40 anos de carreira… Como avalia sua trajetória ?
Deo Garcez – Avalio com orgulho, uma felicidade muito grande por ter realizado meu sonho e ter essa trajetória, essa representatividade. Eu que venho de um subúrbio, negro, com dificuldades, que nunca deixei que fossem obstáculos para realizar meu sonho. Ser artista não é fácil, ainda mais no Brasil. Sempre procurei, nos meus trabalhos, abordar a temática afrobrasileira , a luta antiracismo. Isso me dá grande reconhecimento, como a medalha Pedro Ernesto, que recebi na Câmara de Vereadores do Rio, por conta de Luiz Gama.
– Como lidou com a pandemia? O que reavaliou com tudo que o mundo esta enfrentando?
Deo Garcez – Tenho conseguido produzir de forma proveitosa, através de leituras, reflexões, experimentações artísticas – como os dois espetáculos em formato online. Estamos nos adequando a tudo. Nesse momento, chega-se à conclusão que o mundo precisa mudar. Cuidar da natureza, da própria vida, da saúde, sermos menos individualistas, pensarmos no bem comum. Deixar o capitalismo um pouco de lado e pensar no bem coletivo.
– Quais os planos e o que espera para 2021, para você, o nosso país e o mundo?
Deo Garcez – Continuarei Luiz Gama, claro. Anjo Negro continua em janeiro, terceiro ato. Tenho outro texto, que é um monólogo, de Ricardo Torres, diretor de Luiz Gama, para o qual já procuro patrocinador. Fala das minorias, da luta pelos direitos, o preconceito de diversas formas; temática necessária. Tem dois curtas e ainda uma outra peça de cunho histórico…. Muitos planos !( risos). Em janeiro também volta ao ar a novela Salve-se que Puder, em que vivo o médico Emir.
Para o Brasil, espero, que nossos governantes pensem e coloquem em prática políticas públicas que favoreçam aqueles que estão à margem e são uma grandíssima maioria. E também combater o racismo que mata nossa população negra. Que nas nossas escolas se conte a verdadeira História do Brasil, que a Lei 10.639 (que obriga o ensino da história da África e a importância dos negros na formação do Brasil) seja colocada em prática. Que se pense realmente num Brasil para todos, com saúde e educação de qualidade, moradia digna e igualdade de direitos de modo geral.
Foto: Vivian Fernandez