Jornal DR1

Delírios de um homem no post mortem

Penso ser universal a pergunta sobre o que nos acontece depois que morremos. Pois, muito bem! Finalmente vou esclarecer o mistério que obseda os seres humanos através dos milênios, bastando aos que me leem acompanhar minha viagem ao reino do Hades para concomitantemente, pressentirem suas próprias trajetórias no post mortem.

“Então os céus azulados foram cindidos abruptamente por fortes rajadas de vento e, surpreendentemente, o teto do mundo foi vagarosamente vergando-se, humilhando-se, até tocar na superfície brilhante dos mares.

E céus e mares cingidos como o cristal do olho à visão produziram um poderoso perfume de âmbar e sândalo que invadiu toda a terra, inebriando os animais que, enlouquecidamente, sentiam uma poderosa e irrefreável vontade de acasalamento. Até os subterrâneos da terra puderam ouvir estes sons voluptuosos do embalo sexual e do frêmito universal nasceram repetidamente novos seres que se ajoelhavam diante do universo, agora multicolorido e rasgado obliquamente, aqui e ali, por imensas faixas de sêmen branco.

“Eu sou aquele que está à procura” – ouviam os meus ouvidos, enquanto eu me deliciava com o magnífico espetáculo cósmico.

“Mas que és tu”? – perguntava ansioso o meu coração disparatado e sofrido que nada entendia dos mistérios da criação.

“Eu sou aquele que é, aquele que foi e por todo o sempre, aquele que será” – disse uma voz amorosa que parecia ser de um velho japonês.

Então comecei a chorar. Não queria, mas comecei a chorar copiosamente, lembrando da minha infância, de meu pai e de minha mãe.

Novamente rugidos se espalharam pela terra perfumada e grudada ao mar e eu senti medo, muito medo, o mesmo que me afligia desde tempos imemoriais, desde a hora fria do parto, quando a mulher que me criou trouxe-me à consciência de mim mesmo.

“Eu sou a luz do mundo e quem me seguir não viverá nas trevas”. Ouvia-se esta imensa cantilena por todos os lados de onde surgiam estrelas e todos os entes inanimados subitamente transcenderam suas formas brutas e petrificadas para cantarem em uníssono, a mais bela música jamais ouvida antes por criatura humana.

Então, sem saber ao certo o porquê, meu coração se alegrou tão vivamente que me pus a rezar como havia feito antes, na noite da minha morte. E rezei com fervor, com devoção, com denodado zelo, o mais puro, o mais belo sentimento de misericórdia que alguma vez pude demonstrar. Senti na face da criança (que novamente voltei a ser) um beijo quente e prolongado.

“De onde vem este afago”? – perguntei olhando para o alto que, ao mesmo tempo, era o chão dos meus sacrifícios cotidianos – “De onde vem o beijo”?

Inesperadamente, um torvelinho de água espraiando âmbar e sândalo revivescidos arremeteu-me para os espaços infinitos. Novamente senti um hálito puro e bom aquecendo meu corpo (eu era adulto agora) e de chofre, cai dentro de uma estranha luz. Lentamente, muito lentamente e sem nenhuma dor, fui me tornando eu mesmo luz, pequenino fulgor como estrela incrustrada no firmamento.

Mas, antes de retribuir o beijo na ressurreição que brilhava diante de mim, antes de encontrar os lábios sensualíssimos de Deus, devo admitir, ainda chorei uma vez mais.

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