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Mantícora

Seu porte descomunal arrebatou Ariadne, seus olhos em chamas – fixos nos seus – a musculatura colossal das patas, das asas; a cauda de escorpião… veio, movendo-se por entre as pedras…  pendulava a cabeça, soturno, o cenho franzido coberto por pelos entremeados de areia e tempo… e foi como se o tempo abrisse a boca e murmurasse, sibilante, grave como um trovão encarcerado num grande crânio… dirigiu-se a ela, embriagada e presa; a superfície de suas vísceras, seu espírito, num êxtase ácido, sonhava;  começava a ser devorada, vagarosamente, pela entidade, besta pétrea…que rugiu:

Faço-te um bem, não por ti. Maldita és, de fato. Mas creias: não é culpa que inocularei em ti. Antes, tenho fome.

Um velho de mais de 90 anos abandonado num Hospital Público, em plena miséria…  a próxima viagem de ‘eleitos’ para um destino raro e paradisíaco… sinta-os e ei-los em teu corpo que os misturo, os devoro!  

As alegrias de tua infância não te façam esquecer que apodreces e tens na pele as chagas da incerteza do amparo divino:  amiúde, tal ‘presença’… tu a confundes com combinações bioquímicas agradáveis e efêmeros espasmos de um otimismo gratuito que fazes girar, na roda da fortuna de tua misteriosa travessia de um Nada a Outro… em teu corpo! E tal sentimento se enraíza e eu os misturo, os devoro!

No fim de 2020, 19,1 milhões de brasileiros, teus irmãos, conviviam com a fome. Em 2022 este número cresceu para 33,1 milhões.  A isto, em ti misturo o vídeo da lagosta pulando no óleo quente e suas mais de 33,1 milhões de ‘views’… sinta-os e ei-los em teu corpo, atingidos por meu ferrão, cujo veneno, os que experimentam são mais desejosos de conhecer a morte!

Posso continuar a encontrar em teu corpo provas, dentre as mais saborosas – facilmente encontro alvos férteis à minha cauda – aos montes, tu que és parte desta humanidade que, diante de si mesma, decai abaixo das feras, dos insetos, dos microorganismos e das peçonhas que a vós vos atormentam e impedem o sono, na dor.  Lembra-te: não é culpa que inocularei em ti. Não é o que em ti, letífero convite, crê na morte em vida; ou na vida, na morte. Porque saberás que não é por um amontoar de palavras que se vive a verdade. Em labirintos, notícias infinitas e mesmas… e grandes questões seculares se emaranham… e em teus tecidos mais e mais palavras te segregam te ti mesma… e tu confunde tal sensação com a de existir. 

Dito isto, a grandiosa besta, saciada de carne e sentido, vira-se, vagarosamente… os olhos faiscantes contemplam as nuvens de uma tempestade azul ciano que se aproximara.

Ariadne, finalmente, acorda do coma.

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