Cauê trancou a porta do quarto como fazia costumeiramente e acendeu o segundo baseado do dia. Deitou-se displicentemente na cama e ficou pensando nas coisas que mais odiava na vida. A primeira delas, sem dúvida alguma, era a religião e aquele papinho besta de que Deus é amor e outras bobagens parecidas. Religião é coisa de beatas frustradas, pobres em geral e sobretudo, de pessoas gananciosas tirando proveito da ingenuidade dos ignorantes.
A segunda coisa era o sentimentalismo barato, quando o senso comum se referia ao decantado e piegas amor materno. Amor de mãe é incondicional, diziam eles sempre sorrindo. Que grande mentira essa! Venham conhecer a famosa Juíza de Direito Maria Emília, sua adorável mãe, capaz de trair o marido sem nenhum remorso na própria cama do casal e abandonar o seu bebê com apenas sete meses de existência. E em terceiro lugar, detestava com todas as ganas, a universidade e aquele bando de gente que aos poucos vai se tornando arrogante e opiniática, somente porque entrou num vestibular concorrido nacionalmente. Grande droga essa!
Cauê olhou o relógio e viu que já era quase nove da noite, apagou o cigarrinho mal cheiroso, jogando-o no lixo e deu-se conta de que dali a 20 dias faria 19 anos. Imaginou o dia do aniversário e o porre que seriam os cumprimentos, as ligações protocolares dos tios e principalmente, a visita do pai fazendeiro que adorava voltar a São Paulo em meados de dezembro para fazer compras e visitar a bolsa de valores.
Decidiu, então, viajar à Patagônia Argentina para celebrar os 19 anos de rebeldia e solidão. A passagem aérea e as diárias nos hotéis estavam os olhos da cara, mas, como dinheiro jamais foi problema para a família Azeredo Marquês, comprou o pacote de dez dias naquela mesma noite.
El Calafate está localizada à beira do lago argentino, que é de um azul cobalto esplendoroso e aos pés da imponente Cordilheira dos Andes. Cauê havia chegado cansado ao hotel, mas mesmo assim, preferiu fazer uma caminhada logo após o almoço para melhor conhecer a minúscula e encantadora cidade.
Percorrendo a rua principal e absorto em preocupações, de repente, não se sabe de onde, um cão pequenino veio em sua direção, latindo de maneira esganiçada e feroz. O peludo mordeu-lhe a perna direita e, mesmo depois da saraivada de tapas e empurrões, continuou a atacá-lo furiosamente. Pessoas se acotovelaram para ajudá-lo e depois de muito rebuliço, finalmente imobilizaram o poodle branco, irascível e magérrimo.
A perna sangrava e ele foi levado ao posto de saúde para tomar as vacinas e fazer os necessários curativos. A estadia no centro médico durou apenas meia hora, mas foi o suficiente para alterar os planos delineados para a tarde.
Apesar da dor pulsante, Cauê resolveu andar cerca de cinco quilômetros para chegar aos pés da cordilheira sedutora e misteriosa.
Uma hora depois lá estava ele, embevecido, parado em frente das majestosas montanhas nevadas. No alto, viam-se dois condores magníficos, voando entre as nuvens algodoadas, espalhando-se conforme a direção imprevisível dos ventos.
O jovem ficou ali em silêncio por algum tempo, mas sem razão aparente, começou a chorar um choro profundo, triste e sofrido, onde cabiam os cigarros de maconha, a pornografia cotidiana, a profunda solidão das noites, o desalento das manhãs, a falta de amigos, a implacável saudade da mãe, 19 anos de uma vida inútil e mesquinha. Pegou um pedaço de gelo nas mãos, sentiu a água gelada se desfazendo entre os dedos, contemplou novamente as aves longínquas e teve vontade, pela primeira vez na vida, de rezar.
“Óh Deus! Tenha piedade de mim, porque preciso de Ti”, repetiu a frase dezenas de vezes, como se fosse a senha para uma nova forma de existência. Depois limpou o rosto vagarosamente, tentou se recompor da forte emoção e andou ligeiro de volta a El Calafate.
As luzes da tarde tinham mudado a coloração do lago argentino, agora o azul era brilhante e anil e Cauê estava feliz como nunca antes. O coração exultava, a perna ainda latejava, mas ele prometeu a si mesmo ligar para a mãe assim que chegasse a São Paulo, para falar sobre a necessidade urgente do perdão e da reconciliação.