Todos estão se preparando para o grande dia. No condomínio luxuoso do Rio de Janeiro, o homem pede à esposa a sofisticada abotoadura Mont Blanc usada somente em ocasiões especialíssimas, engalanadas, e ela por sua vez, dirige-se ao esposo, pedindo-lhe para abotoar o vestido dourado desde a parte baixa das costas brancas e ossudas até a nuca.
Ao mesmo tempo, em Ibotirama, no coração da Bahia, a mãe pobrezinha veste esmeradamente os três filhos, como se fosse levá-los à missa dominical ou melhor dizendo, como se fosse exibi-los diante de anjos serafins ardendo em luz. Ao norte de Minas Gerais, o renomado esportista se apronta para o majestoso acontecimento, deliciando-se como criança imersa em demorado banho, escanhoando com precisão e suavidade o contorno da barba hirsuta sobre o queixo quarentão. Nos palácios governamentais, o ritual de camarim também se repete com serviçais e autoridades aturdidos, em busca da melhor apresentação possível para celebrar o dia esperado.
Na verdade, toda a gente, em todas as latitudes e longitudes do Brasil, está ocupada em preparar-se condignamente para a efeméride inesquecível. Mas não são apenas os humanos que estão pressurosos, os animais, por seu turno, estão agitadíssimos, desde os inofensivos cães passeadores dos jardins paulistanos até os ardilosos e temidos pit bulls emitem sons sensuais debaixo da névoa fina e fria que lentamente envolve a cidade. Até a flora multicolorida está umbilicalmente mobilizada para o devenir. As rosas ensimesmadas não desabrocham as pétalas banhadas em água, guardando assim o perfume somente para si mesmas, enquanto os cactos terrosos do sertão arremessam os espinhos em direção ao sol que se levanta hostil e imponente.
Os ventos do sul, antes lancinantes chicoteando os majestosos picos das Agulhas Negras, agora arrefecem o ímpeto como bebês temperamentais saciados por leite materno e o mar de Angra dos Reis enovela-se silente na amplidão azul, entrecortado por cardumes de badejos pacificados. Até as pedras – símbolos da imortalidade – deixam de rolar sob o estrépito dos rios caudalosos e das cachoeiras esfumaçadas e magníficas, como o vale do Pati na Chapada Diamantina.
Mas, quando os relógios bateram pontualmente às 10 horas da manhã, os minerais, a flora deslumbrante, todos os elementos da terra e os brasileiros voltaram suas almas e movimentaram-se em direção ao coração das trevas, uma série de montanhas escarpadas na capital do país. O alarido dos entes foi então ensurdecedor, mas o que chamou a atenção dos deuses nos céus foi o perfume diferente que havia no lugar, perfume das frutas espraiadas pelo imenso continente verde e amarelo: abacaxi, acerola, caqui, figo, melão, pera, tangerina e uva.
De repente, havia mais de 220 milhões de concidadãos acotovelados nos cumes dos montes e as pedras, rosas e águas estavam suspensas no ar, quando no descampado infinito apareceu a gloriosa criatura, dando sentido ao grande dia. Era um homem enorme vestido com se fora um rei da Espanha, adornando sandálias de couro e túnica vermelha de veludo cobrindo os largos e viris ombros.
Ele postou-se cerimoniosamente bem no centro da terra calcinada, ajoelhou-se, olhou todos em volta e tirou das belas roupas um objeto notável. Era um logotipo da Rede Globo de Televisão, reluzindo envolto numa espessa redoma de vidro. Então, o homem bateu o pé três vezes no chão, gritando: “LIXO, LIXO, LIXO” e uma imensa cratera se abriu.
Havia fogo e enxofre espoucando lá no fundo, quando o glamoroso nobre lançou, sob aplausos dos circunstantes e ricocheteios alegres dos seres inanimados, a Rede Globo de Televisão para o nono círculo do inferno, onde perecem todos aqueles que conspiram contra a bem-aventurança do seu próprio povo.