Jornal DR1

À luz da palavra

Então, as palavras se contorceram violentamente até a plenitude do êxtase febril e, inebriadas pelo desejo, perderam-se pelas estradas feitas de cascalho esbatido que iam culminar na parte mais elevada da cidade que fica ao sul da Patagônia. Para lá singrou o meu pensamento, voejando através da Cordilheira dos Andes, acompanhado por um condor com suas enormes asas abertas, desfilando majestosamente sobre a cidade encantada e azul de El Calafate.

Eu queria encontrar a mulher amada novamente e olhar bem fundo naqueles olhos tonitruantes que enfeitiçavam até os ramos encurvados, nascidos pelo caminho feito de flores roxas, bem perto da casinha onde morávamos dentro da minha imaginação. Era auspicioso o deambular e nossa respiração brotava dentro da terra esbatida que cumulava a vida que possuíamos de renovadas esperanças, pois nos amávamos como dois bichos sedentos por prazer sexual. Então nos perdíamos enlaçados, molhados pelos suores salgados que escorriam e demarcavam a linha tênue de nossos corpos, que em seguida desanuviavam como torrentes de água boa as almas individuais. Achava que podia fenecer ali mesmo, consagrado à comunhão com a mulher da minha vida, presa à cama sem véus e sem limites, sombreando como o condor gigantesco a casa no interior da Argentina.

As palavras, as minhas palavras percorriam os vales ao largo da instância Perito Moreno, como fantasmas que queriam perscrutar intimamente o homem que eu era, ao lado da mulher enigmática que assaltava os músculos fortes do meu coração. Coração que parou de bater por vezes, trepidando com o gelo e o medo pânico cingidos à floresta solitária que modificava a paisagem, antes silente da cidade envolta pelo negrume.

Não podia me afastar da jovem sedutora e das matas agrinaldadas (seriam o mesmo ser iluminado?), onde o leite e o mel escorriam em direção ao meu peito desnudo, inerte, transido pelo estranho impulso de dar vida à vida nascida do ventre feminino. Coloquei calmamente os ouvidos bem perto do tesouro macio e escutei saltitarem criaturinhas felizes que viriam a povoar o mundo. Todas as crianças estavam de repente unidas no ventre fértil da mulher amada e eu tive vontade de chorar. E pranteei o escândalo criminoso do aborto e roguei aos céus e pedi a Deus misericórdia por mim e pelas mães desesperadas, porque entregues a si mesmas, à necessidade dos juízos humanos sempre relativos e erráticos.

A mulher que me amava despertou do sono profundo e deu um bom dia ensolarado aos olhos que a observavam cheios de curiosidade:

– Carregas em ti o dom supremo de entusiasmar a terra?

– Carregas em ti o dom supremo de fazer todos se amarem como semelhantes desde a criação?

– Carregas em ti o dom supremo de carregar nos ombros a mesma cruz que eu carrego até o dia da minha morte?

Ao amanhecer, as palavras emudeceram e foram se afastando dos olhos maternais e, perdidas como órfãos num navio sem rumo, queriam a todo o custo, dar as mãos novamente e fazer ciranda e cantar e brincar nas estradas de El Calafate, onde eu cuidadosamente trazia-as à verdade da luz.

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