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Lâminas do Cotidiano: Livre fluxo da consciência

Foto: Reprodução

Eram casas estendidas com os telhados agasalhados por panos marrons tipo saco de cimento e pareciam grandes e horizontalizadas uma depois da outra, depois se pareciam mais com estranhas aparições de extra terrestres encravando na terra fofa a marca de suas gigantescas aeronaves e o sol era esverdeado até chegar o negrume espesso e absoluto e tudo foi perdendo a forma, o alinhavo, o colágeno e assim houve uma imersão estelar no caos onde todos os monstros vociferavam sons de arrepiar dirigidos em uníssono ao alto e se enfrentavam numa batalha magnífica  de chifres, garras e fúria e eu assistia tudo sentado diante da TV preto e branco como era normal naquela época e adorava as tardes geladas em que ficava debaixo dos cobertores e lá fora era tudo cinza e ventania e eu me sentia melancólico e diferente das outras crianças mas gostava imensamente de futebol e tinha o nome dos jogadores do meu time decorado matematicamente e na radio eu imaginava como era um campo de futebol mas supunha haver colunas romanas no gramado não sei porquê ou talvez chegasse a sabê-lo porque meu pai suscitava essa estranha imagem  gritando com grande alegria quando o Sócrates marcava um gol, então ele estalava os dedos e se comprazia num deleite só sentado na hora do jantar com carne  à vontade e sobras de ossos que ele chupava com sofreguidão e depois dormia gostoso no mesmo outono que eu dormia mas nãos nós encontrávamos jamais e assim foi por toda a vida, ele entrando e eu saindo não entendo bem esse destino  errático não era ódio propriamente mas uma desavença eterna que nem minhas rezas dão conta ainda que ele tenha morrido há 17 anos e eu sinta saudades mas ainda goste dos lugares solitários onde ele sonhou uma vida diferente para si mesmo mas jamais nos contou nada a respeito somente quiça ao caoziznho Fred que ele adorava e que rasgava correndo o jardim numa velocidade de bólido com aqueles olhos negros e travessos que eu um dia encontrei lá na Bahia grudados no rosto de uma moça morena muito bonita que andava com vestido finino e deixava entrever os seios pontiagudos que eu imaginava como picolé de fruta  querendo saciar esta carne com a carne de garoto na flor da idade que deseja mulheres mas que acaba mesmo é escrevendo canções tristes boas de cantar já amadurecido no sítio dos amigos ao lado da esposa de mãos carinhosas e todas as responsabilidade da vida adulta que de vez em quando dá vontade de abandonar e voltar às tardes sozinho diante da TV e a alegria do chocolate derretendo na boca como os seios impalpáveis da baiana sedutora que andava de sandálias surradas mas que me pareciam a própria realeza e depois o sol queimando a pele até que ela ficasse quase preta e olhando no espelho eu gostava do que via me achando bonito mesmo tendo um ardor incômodo subindo pela barriga e aquele cabelão crespo difícil de pentear mas que caia bem no punk que me tormei antes de ser sociólogo e o rock que salvou tantas e tantas vezes a minha existência e depois a poesia que eu continuei a amar como se ama uma lembrança perdida na memória e a angústia do tempo tudo corroendo em ziguezague e me fazendo deseperado em busca de algo perdido que eu não encontro mais, meu pai pelo caminho que levava à casa velha, o nosso jardim emoludurando histórias impregadas  no que chamo de dignidade de ser quem sou e a fortaleza de resistir ao suicídio e sorrir a cada músculo conquistado nos quase 60 anos e tá certo deixei os doces mas ganhei resistência e fôlego e durmo quase nada porque penso em Deus dia e noite, noite e dia e sei que ele raramente pensa em mim mas quando pensa eu sinto grande aperto no coração com a luz  cegante e meu pai correndo pelo aberto azul do céu mordiscando os restos de ossos num outono crespuscular há muito pisoteado, desaparecido.

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