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Lâminas do Cotidiano: Dostoievski e a questão da liberdade

Dostoievski (1821-1881) possuía não apenas uma visão pessimista como também verdadeiramente trágica da condição humana. Isto significa, em um primeiro momento, a tenaz suspeita de que a pretensão do homem à autossuficiência (que a filosofia grega denominou auto pistis) está preliminarmente fadada ao fracasso.

Mas quais seriam as causas dessa incapacidade estrutural? Essencialmente, duas: a primeira, de ordem epistemológica, pois a razão – esta faculdade que nos distingue dos outros animais – seria incapaz de nos proteger dos imperativos da contingência, das incertezas que nos devoram constantemente.

A segunda desconfiança baseia-se em nossa liberdade ou autonomia moral (entendida como escolha da melhor vida a ser vivida) fundada em uma vontade que, não raras vezes, é inimiga da virtude racional e propende ao excesso, à desmesura dos prazeres, suscitando, assim, a violência intersubjetiva, especialmente aquela responsável pela diluição (na medida em que não seja controlada por uma ordem externa) da tessitura política-jurídica que envolve os homens num lugar-comum.

A denúncia às pretensões da razão e da liberdade humanas conforma o Topai das mais importantes personagens de Dostoievski.

Entretanto, devemos ter redobrada atenção quando abordamos esse tópico. Não nos esqueçamos de que, para o autor russo, só existe uma autêntica liberdade: aquela que nos “desumaniza”, convidando-nos a mergulhar nas aporias existenciais e na fragmentação “perspectivista” inerente à nossa alma profunda, atormentada por contradições dilacerantes.

A liberdade destituída desse caráter trágico, ou seja, a mera liberdade vinculada à subjetividade autossuficiente, à decisão moral e ao desfrute de prazeres impermanentes, aprofunda-nos nos miasmas do enfado e nos compromissos pragmáticos da vida, e em nada poderia auxiliar-nos diante do sufocante abismo de nós mesmos.

Assumir sem tergiversações a liberdade autêntica dos subterrâneos – da heteronomia humana – é dar voz à dor do homem, que não encontra sentido existencial para a sua vida, posto que está preso à indiferença de um cosmos repetitivo e longínquo, tendo que deixar, por assim dizer, o ouvido colado à terra para escutar o canto desesperado da humanidade e pressentir a palpitação do sofrimento no âmago das coisas criadas, identificando-se, pela miséria ontológica, com os seus semelhantes.

Sem essa liberdade trágica e a representação simbólica das mazelas do mundo, mesmo o pensamento mais sofisticado (baseado tão somente na autonomia racional/moral do sujeito), perde seu direito de existir.

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