Jornal DR1

Lâminas do Cotidiano: Para Ruth com amor e sordidez

Havia algo de misterioso no teu olhar ferino, algo que me lembrava do aroma cítrico dos laranjais nas tardes de primavera.

Indescritível aquele olhar da jovem magrinha e silenciosa que amava o silêncio da noite e os fantasmas intergalácticos que habitam o imaginário da criatura humana desde o paraíso perdido…

Entretanto você como boa geminiana, mal suportava a solidão e por isso se aninhava junto ao meu peito como uma criança se embrenha, feliz, debaixo das cobertas de lã.

Mas acima de tudo, o que eu gostava mesmo era ficar te observando de longe, entreolhando curioso os cômodos da pequena casa florida.

Tu colocavas as mesmas músicas de sempre no toca discos, especialmente aquela do Tim Maia chamada primavera e saias dançando descalça, rodopiando pela sala de estar. Santo Deus como era bonito apreciar a tua alegria morena, a tua beleza de moça franzina sob a luz do sol vinda da janela escancarada.

E meu amor por ti quase doía!

Ou então fitar- te pela manhã, séria e concentrada, escrevendo teus artigos científicos, sempre impecavelmente redigidos e analisados.

Mas minha cena predileta era ouvir aquela risada desconcertante e sincera que fazia teu rosto tremer e o corpo balançar inteiro como estes bonecos engraçados na frente dos postos de gasolina soltos pelo ar.

Lembras querida Ruth daquela noite de ano novo quando tu me pediste para escrever um conto que falasse singelamente de amor e sordidez?

E eu sem saber o que isto realmente significava, acabei concebendo a história maluca de um gato gordo que ficou preso na tubulação do ar condicionado e teve o rabo preto incendiado por um curto circuito.

Lembra-te do conto? Lembra-te que o gato Clóvis começou então a miar de um jeito estranho como se estivesse bêbado, grunhindo um chiado meio anasalado e que de uma hora para outra, ele começou a falar alemão?

Tu te recordas que quando eu contei a minha história, você riu tanto que precisou usar a bombinha para asma?

Hoje tão distante de teus encantos, percebo que sempre que as noites caem e a casa fica vazia, reaviva-me no coração aqueles teus olhos de jabuticaba transpassando minhas promessas de fidelidade eterna.

Nunca, jamais nos separaríamos e nada poderia destruir o nosso encontro pungente e singular.

Mas não foi isto que aconteceu e aqui estou eu tantos anos depois, Ruth, escrevendo novamente sobre o amor e a sordidez.

Mas agora sem a presença de teu riso largo, perdido para sempre nas casas floridas da memória.

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