Cárcere e lar de um importante artista plástico, o mBrac trás a arte como enfrentamento da loucura e preconceito
A arte muitas vezes floresce em meio a loucura. Contudo, a loucura muitas vezes é tratada com descaso, desdém dos sãos e até mesmo violência. A história manicomial brasileira é repleta de muito sangue e tortura, em que pessoas neurodivergentes ou com transtornos mentais foram aprisionadas nos sanatórios e submetidas a tratamentos degradantes e tortura. Pelo Brasil, muitos manicômios marcaram cidades com suas tristes histórias, da loucura dos sãos sob os loucos ou considerados loucos.
Um desses lugares foi o Instituto Municipal de Assistência à Saúde Juliano Moreira, também conhecido como “Colônia”, localizado na Taquara, Zona Oeste do Rio de Janeiro. Fundado em 1926, ao longo de sua existência chegou a abrigar cerca de 5300 internos em seus 79 hospitais e pavilhões. Um destes internos foi Arthur Bispo do Rosário Paes, um importante artista plástico cuja a história é o sincretismo da frase que abre esta reportagem.
Arthur nasceu em 1909 em Sergipe, filho de um carpinteiro. Não sabe muito sobre sua infância, apenas que ingressou na Escola de Aprendizes Marinheiros em 1925 e no ano seguinte se mudou para o Rio de Janeiro, onde se alista na Marinha de Guerra. Lá, conhece o boxe e logo se torna campeão dos pesos leves, porem, sua truculência causou muitos atritos e no seu desligamento com a marinha.
Ele ainda tinha o boxe como carreira, então arrumou um emprego para complementar sua renda. Porém, um acidente com bonde o deixou manco, o impedindo de continuar como pugilista. Como o acidente aconteceu na empresa onde trabalhava, Bispo passou a morar de favor na casa do advogado que o ajudou a processar a empresa, como uma espécie de “faz tudo”. Nesta casa, em 22 de dezembro de 1938 é que acontece o evento catártico em sua vida.
Um sonho envolvendo anjos lhe faz uma revelação. Bispo sai de casa madrugada a dentro, até chegar ao Mosteiro de São Bento, no Centro do Rio, onde diz aos incrédulos frades que recebeu a missão de julgar os vivos e loucos. Os homens de Deus o consideram louco e o encaminharam para o Colônia. Foi aí que seu calvário de internações começou. Seus delírios o faziam entrar e sair do confinamento, até que em 1964 passou a morar definitivamente no sanatório.
Mas como as visões não paravam, Bispo decidiu tecer mantos e estandartes com inscrições do que via em seus sonhos, usando como material as linhas azuis que desfiava dos velhos uniformes dos internos e objetos tais como canecas, pedaços de madeiras, arame, vassoura, papelão, fios de varal, garrafas e materiais diversos que ele obtinha em refugos na Colônia.
Por 18 anos, Bispo fez suas peças, não como arte ocupacional, mas como sua missão, que só seria revelada no Juízo Final, segundo suas visões. Porém, seus mantos chamaram a atenção da mídia e críticos de arte. Seus estandartes geraram a amostra “Margem da Vida”, no Museu de Arte Moderna (MAM) em 1982. Contudo, Bispo não se considerava um artista. Ele foi o todos os estigmas de marginalização vigentes na sociedade: negro, pobre, louco, asilado em um manicômio. Sua missão terminou aos 80 anos, falecendo em 5 julho de 1989.
Contudo, sua vivência virou simbolo da luta antimanicomial e sua arte incentivou outros detentos a combater a loucura por este caminho. As obras de Bispo foram abrigadas no Museu Nise da Silveira, mas onze anos após sua morte retornariam ao instituto, que passou a se chamar Museu Bispo do Rosário Arte Contemporânea, em homenagem ao seu principal artista.
Em 27 de outubro de 2022, o Instituto Municipal de Assistência à Saúde Juliano Moreira, fechou o portão do Núcleo Franco da Rocha, o último que ainda funcionava, sob ordens da Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro (SMS-Rio), que concluiu assim sua política de desinstitucionalização de pacientes psiquiátricos na cidade, marcando a luta antimanicomial contra o estigma da loucura no país.
Agora o local funciona efetivamente o museu, que além das peças originais de Bispo, abriga acervos de arte popular contemporânea. O mBrac funciona com 3 eixos fundamentais: Acervo, Exposições e o Polo Experimental. Nas quatro galerias, o prédio sede da Colônia e no Polo Experimental – espaço dedicado às atividades de educação – o museu apresenta mostras e exposições, além de oferecer uma série de programas educativos voltados para todas as idades, gratuitamente.
Ao visitar o mBrac, você tem a sua disposição um roteiro de história e arte, começando pelo Circuito Cultural Colônia, incluindo o Centro Histórico Rodrigues Caldas, remanescente das terras de engenho do século XVII, as dependências do Pavilhão 10 do Núcleo Ulisses Vianna, onde Bispo do Rosário viveu, ocupando um conjunto de celas que serviu como seu ateliê e ao Polo Experimental de Convivência Educação e Cultura.
O acervo do mBrac também está disponível para pesquisadores e historiadores, devido a sua importância em preservar e difundir a memória da Colônia Juliano Moreira e a luta antimanicomial. O Museu funciona de terça a sexta-feira, das 10 as 17h e fica na Estrada Rodrigues Caldas, 3400, na Taquara.