Jornal DR1

A esperança de Martinho em “Violões e cavaquinhos”

Martinho da Vila já brincou mais de uma vez que estava cansado de cantar que a vida ia melhorar, em referência ao refrão do clássico “Canta canta, minha gente”.

Eu digo que tô cansado, mas nunca parei de cantar esses versos”, nota o compositor, sorriso aberto, para não deixar dúvidas que, brincadeiras à parte, sua natureza é de quem canta forte, canta alto a esperança.

Em “Violões e cavaquinhos” (Sony Music), seu novo disco, Martinho vai mais longe ao defender sua fé na vida, no que virá. Ao fim de “Canta canta, minha gente”, que abre o álbum num dueto seu com o rapper L7NNON, o sambista da Vila diz: “A esperança não é a última que morre. Ela não morre”.

“Violões e cavaquinhos” é, em suas 12 faixas, a reafirmação insistente desse lema de Martinho. A esperança que vive nele ecoa nos calangos que remetem à sua origem em Duas Barras; nas homenagens a Pixinguinha, Donga e João da Baiana que apontam para a ancestralidade do samba, uma origem ainda mais remota; nos sambas-enredo que refletem a história de quem carrega uma escola no nome; nos sucessos revisitados com frescor; nas canções inéditas de quem, aos 86 anos, segue compondo; nos diálogos de gerações que ele promove nos duetos com suas filhas Alegria Ferreira e Mart’nália e com Preta Gil, além do já citado L7NNON. Tudo no álbum aponta para a perspectiva solar, otimista.

Tem muita gente que critica os otimistas”, diz Martinho. “Mas foram eles que mudaram o mundo, porque o pessimista não faz nada”.

No disco, a alma enorme das canções de Martinho é exposta na sutileza miudinha, ponta dos dedos. Os arranjos se resumem basicamente aos dois instrumentos do título, uma ideia antiga do artista. Rafael dos Anjos, Carlinhos 7 Cordas, Gabriel de Aquino, Ana Costa, Cláudio Jorge e Wellington Monteiro se alternam nos violões. Já nos cavaquinhos estão Pretinho da Serrinha, Fernando Brandão, Alaan Monteiro, Nilza Carvalho, Alceu Maia e Wanderson Martins. A percussão, que aparece de leve, é feita pelo próprio Martinho.

“Canta canta, minha gente” ganha suingue sincopado marcado no violão de Rafael dos Anjos e no cavaquinho de Pretinho da Serrinha. L7NNON — ou L7, como também é conhecido — se mostra  partideiro criando versos que conversam com os originais da canção, como em “Gosto de rimar na batida/ E se tem coisa que não gosto é das coisas dos outros”. Inspirado pela companhia, o sambista, por sua vez, se lança num flow de canto-fala, fazendo sua graça de rapper. 

Na sequência, vem a inédita “Coisa de preto”, parceria de Martinho com Chico César. O paraibano deu o mote e o sambista embarcou, listando as “coisas de preto”: “Comer feijão com angu/ Beber cachaça com caju”, “Dar rabo de arraia na capoeira”.  Carlinhos Sete Cordas e Fernando Brandão fazem a cama do samba de acento rural para o desfile do inventário de negritude brasileira.

Só coisas boas”, resume Martinho.

“Sempre bela” é outra da safra de inéditas, levada com cadência pungente por Gabriel de Aquino e Alaan Monteiro. O primeiro verso bebe da fonte da poética do português de Portugal: “Eu gosto imenso de você”. Os últimos evocam nossa herança tupi: “Cunhatã/ Sempre jovem cunhã”. Sua musa luso-indígena da canção, Martinho explica, é o amanhecer:

Eu gosto de dormir depois que amanhece”, conta o compositor. “Gosto de ver o dia clarear um pouquinho, é bonito. Fiz essa música então falando do amanhecer, desse meu hábito” (“Espero pra lhe venerar/ Com esse meu modo de ser/ De olhar, de sentir, de amar”, diz um trecho).

Em “Mulher sorriso”, Gabriel de Aquino e Alaan Monteiro brincam de variar as levadas entre samba, marcha-rancho, inspirações de Bach. A canção nasceu de uma letra de Arnaldo Niskier, que Martinho adaptou e musicou. Novamente, o disco aponta para a luz — a metáfora do dia se renovando a cada manhã não reaparece por acaso.

Depois de apresentar uma leva da nova safra, Martinho traz para a roda dois de seus grandes sucessos unidos na mesma faixa: “Disritmia” e “Ex-amor”. Ana Costa e Nilze Carvalho tratam as canções com a vivacidade que elas guardam, a despeito de terem sido feitas há décadas. A convidada Preta Gil adapta versos para o feminino, abrindo-lhes outras perspectivas: “Vem logo, vem curar tua nega/ Que chegou de porre/ Lá da boemia”.

“Mulheres” é outra célebre na voz de Martinho — a composição é de Toninho Geraes. Em sua nova leitura, acompanhado apenas no cavaquinho de Alceu Maia, Martinho declama a letra e chega a propor uma sutil mudança em dois versos: “Inocentes donzelas, sensuais meretrizes”.

Outra que traz a dupla Ana Costa e Nilze Carvalho no violão e cavaquinho, “Amante fiel” é mais uma canção nova do disco. Na verdade, ela é originalmente o samba-enredo composto por Martinho para concorrer à disputa na Vila Isabel no carnaval de 2023, quando o enredo foi “Nessa festa eu levo fé”. Traz as marcas melódicas e poéticas dos sambas-enredo do compositor, valorizadas pela roupagem enxuta.

No medley que junta “Calango vascaíno”, “Calango longo” e “Calango da lua”, Cláudio Jorge e Wanderson Martins nos levam ao interior do Brasil em seus ponteios. “Som rural, mas não muito”, diz Martinho na gravação. A faixa que, pela sonoridade, aponta para o lugar de onde o artista veio, tem uma convidada que aponta no sentido oposto, o futuro: Alegria Ferreira, sua filha. Para reafirmar o olhar esperançoso, Martinho chama a atenção para os versos que citam seu clube de coração, Vasco da Gama, que nos últimos anos não vem atravessando seus melhores momentos (“Minha alegria é ver meu Vasco jogar/ Eu tô cansado da derrota/ Mas não vou me entregar”).

Logo no início da faixa que une “Batuque na cozinha”, “Patrão, prenda seu gado” e “Pelo telefone”, Martinho saúda Donga, Pixinguinha e João da Baiana, que chama de “Santíssima Trindade da Música Popular Brasileira”. Mart’nália, sua filha, divide os vocais com ele, noutra esquina de passado e futuro que se mostra no disco. Em “Pelo telefone”, ela evidencia a encruzilhada de tempos ao atualizar no contracanto, gaiata: “pelo celular”. A ancestralidade e o contemporâneo também se materializam no violão de Wellington Monteiro e no cavaquinho de Wanderson Martins.

Além de Alegria e Mart’nália, a família Ferreira tem outros representantes em “Violões e cavaquinhos”. Analimar, filha de Martinho, assina a direção de coro. E Martinho Filho é um dos produtores do disco, ao lado de Celso Filho e Gabriel Lucchini. 

“Gbala — Viagem ao Templo da Criação” é samba-enredo de Martinho que a Vila levou à Avenida originalmente em 1993. No início, em cadência mais lenta, de cordas arpejadas, sua beleza fica ainda mais marcada. Gabriel de Aquino, que acompanha o compositor na faixa, também conduz a rítmica mais forte na segunda parte da gravação. “A criança é a esperança de Oxalá”, afirma a letra, afinada com o espírito do álbum.

Os partidos “O pequeno burguês” e “Pra que dinheiro” são lembrados juntos, com a companhia de Wellington Monteiro e Wanderson Martins. Duas canções do primeiro disco do compositor que, ele chama a atenção, são menos simples do que parecem:

Às vezes, quando eu vou num lugar, um restaurante, e tem um pianista lá que me vê, ele começa a tocar uma música minha, tipo ´O pequeno burguês´… Parece que a música tem uma nota só”, diverte-se Martinho. “Não fica legal”.

“Roda ciranda” e “Madalena”, clássicos do repertório de Martinho, encerram juntas o disco, conduzidas por Cláudio Jorge e Wanderson Martins. Com sabor de sabedoria popular, antiga e nova, elas refletem a essência do álbum. E a essência do compositor, que conta que sua primeira profissão, aos oito anos de idade, foi “brincador” (como eram chamadas as crianças que faziam companhia pros menores). Ofício que, aos 86, ainda não abandonou — brincando com versos, com melodias, com seu canto. E no qual segue e seguirá, mantendo seu ritmo:

Eu gosto de fazer tudo devagar. É uma filosofia de vida. Porque o mundo está muito apressado. Esse aparelho aí (aponta para o celular), a Internet acelerou tudo. Então eu faço tudo pra desacelerar. Quem faz as coisas devagar faz mais coisas. E sempre chega no objetivo. Com uma vantagem: chega descansado”.

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