Jornal DR1

A página em branco

Vejo a página em branco à minha frente, repleto de temores. Ela me olha de volta, desafiadora:

– Trouxeste o elixir escondido desde o começo do mundo, capaz de desvelar os meus segredos?

Eu me impaciento e dou de ombros porque não sei como transmudá-la na carne suculenta da poesia. E permaneço lasso, impassível diante do vazio, mas busco como um menino jogando pedras no rio, as chaves possíveis para o entendimento.

Haverá poesia mesmo nas coisas improváveis e triviais?

Haverá poesia, ainda que mínima, nos fantasmas em branco sobre os quais me debruço?

Haverá, conjecturo como um lírico, a presença poética num singelíssimo botão de roupas?

Imaginemos como se fôssemos espectadores atentos, o teatro onde a vida transcorre. Primeiro ato:

“Alguém frequenta um baile sofisticado aos quinze anos de idade. A noite é puro galanteio e profusão de cumprimentos, olhares e flertes. Ela se sente alada, sedutora – todos o testemunham – mas quase no final da festa, uma amiga aproxima-se e diz à moça:

– O botão do seu vestido está aberto!

O sentimento é de humilhação, a jovem que se sentia verdadeiramente atraente agora imagina ter sido motivo de risadinhas de deboche e escárnio. O choro vem vertiginoso e cheio de comiseração pela patética imagem que julgou transmitir às pessoas elegantes, especialmente aos homens charmosos”.

Segundo ato:

“O sertanejo humilde, criado na roça, chega em casa às seis horas da tarde. Está exausto, trabalhou debaixo do sol abrasador, ceifando cana-de-açúcar. Manuelão abre os botões marrons e tira a camisa encharcada de suor. Com prazer quase infantil, torce a peça de roupa para admirar a quantidade de água salgada que escorre das mãos calosas e solitárias”.

Terceiro ato:

“Há mais de dois anos, a dentista não visitava a casa dos pais no interior de São Paulo. Era pungente demais abrir a porta da sala e verificar que tudo estava ali do mesmo jeito que antes: o sofá de couro muito gasto com o passar do tempo, o tapete vermelho repleto de frisos comprado de uma amiga da mãe, dona Geralda, o lustre demasiadamente pequeno para a extensão do lugar. No quarto contíguo encimado por uma manta grossa, o colchão ortopédico, presente para o pai aposentado que sofria de dores nas costas.

Ao abrir a gaveta da penteadeira, uma surpresa: um botão perdido na memória, dourado, aquele mesmo da formatura no clube de campo da cidade. O coração então bate descompassado, palpita e quase se desespera pela falta da família: onde estão todos eles?”.

Observo a página agora salpicada por palavras, muitas palavras. Presumo ter descoberto o elixir, a chave para a compreensão poética, mas ela, sem pudores, vira-me o rosto com desdém. Toma a caneta dos meus dedos ambiciosos e quer escrever como tatuagem na pele do papel, a essência que eu não fui capaz de transmitir. 

De repente, a folha desprende-se da escrivaninha onde estava prisioneira, soergue-se ligeira e salta pela janela entreaberta do quarto. E voa alto, ganha o mundo, estica o mundo como se ele fosse uma enorme toalha de banho, segura as duas pontas horizontalmente e depois torce bem forte, até extrair o sumo perfumado que imediatamente contamina todo o céu com a maciez do sândalo, jasmim, almíscar, cedro, vetiver, âmbar, mel branco, patchouli, gardênia e o extraordinário pêssego de polpa amarela.

Depois, a rebelde se põe a brincar com as nuvens. Abre uma espécie de torneirinha e acompanha os pingos se derramarem no chão distante, até se transformarem em engraçadas criaturinhas multicoloridas parecidas com cavalos marinhos. E tudo é divertido e lúdico.

Então, ela se volta para o quarto de dormir e repousa ao lado do meu travesseiro. Olha atentamente o ambiente em silêncio e solta uma gargalhada, para em seguida dizer-me ao pé do ouvido:

– Dorme, poeta, porque não sou vulgar sentimento. Sou antes o espelho de tua mente que transfigura todas as coisas do mundo.

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