Jornal DR1

A traição

O poeta havia sido expulso da sociedade digital e condenado a viver eternamente numa ilha encantada. Seu crime? Ser incapaz de acreditar na justiça e na ciência humanas como símiles da verdade e, pior do que isso, ser um homem absolutamente inapto para quaisquer atividades comerciais que envolvessem a usura e a exploração como ética dos negócios. Os juízes, escolhidos a dedo, foram unânimes no veredito e ademais, toda a gente que assistiu ao julgamento pela televisão não tinha dúvida alguma sobre a culpa atribuída ao poeta. Cabia-lhe, portanto, o exílio imediato.

Na ilha encantada seu corpo era levado em incrível velocidade, do mar às colinas distantes, acompanhando a errática direção dos ventos e isto lhe causava dores insuportáveis. Era como se leões o devorassem por dentro, rasgando seus órgãos e vísceras de forma cruenta e impiedosa. Entretanto, logo depois da viagem pelos ares e de seu corpo ser abandonado na praia, os membros internos se recompunham e o dilaceramento continuava com a chegada de novos ares gelados.

Certo dia apareceu-lhe uma figura horrenda, meio bicho meio ser humano, cheia de estranhas escamas que cobriam a totalidade do corpanzil esverdeado. Ao invés de olhos, a criatura exibia duas enormes cavidades de onde explodiam chamas pontiagudas e lavas vulcânicas. Este monstro sentou-se no monte mais alto da ilha e começou a falar:

– Tu amas e confias em alguém na sociedade digital da qual foste expulso?

E o poeta respondeu-lhe:

– Sim, tenho certeza de que Mirela, minha mãe, faria tudo que pudesse para terminar com meu sofrimento.

O monstro, então, soltou uma gargalhada que fez acordarem todas as sentinelas de bronze que guardavam o nefasto lugar.

– Faço contigo uma aposta, preclaro poeta. Tu podes ligar para tua mãe e dizer que às 10 horas em ponto desta mesma noite, ela deve retornar tua chamada e se isto acontecer, estarás liberto da maldição que te consome.

Imediatamente, o beletrista ligou para a mãe e contou-lhe a proposta que havia ouvido da lamentável criatura. A resposta da senhora foi perempta:

– Amado filho, às 10 horas desta noite, eu ligarei e tu estarás livre do teu degredo.

Mirela havia sido convidada, entretanto, por seu filho mais novo a participar de uma grandiosa festa. A mansão era deslumbrante e carros luxuosos não paravam de chegar ao local. Os vestidos e as joias das mulheres em especial, pareciam feitas sob encomenda por príncipes árabes milionários.

Mirela entrou acompanhada pelo caçula no salão principal e de repente, estava cercada por muita gente. Todos queriam saber detalhes da sua vida longeva e perguntavam sobre os acontecimentos mais importantes daqueles 80 anos. Ela então se deslumbrava com a curiosidade geral e respondia alegre e enfaticamente a cada um deles.

Havia música, dança, bebidas, canapés e as pessoas pareciam extasiadas com a atmosfera nobiliárquica que pairava no ambiente. O relógio bateu 10 horas e a velha senhora, inteiramente absorta pela atenção dos convidados, esqueceu-se de ligar para o filho poeta. 

Passados apenas 2 minutos das 10 horas, surpreendentemente todos os convivas se afastaram e Mirela ficou sozinha. Desesperada, tentou ligar para a ilha, mas ninguém respondeu. Abraçada ao filho mais novo, caiu em prantos, pois sabia que tinha sido seduzida pela vaidade, a mãe de todos os pecados humanos.

Enquanto isso, no exílio, o corpo do poeta permanecia sendo carregado pelos ventos. As dores continuavam excruciantes, mas agora eram suplantadas por outra ainda pior: a sanguínea traição de quem se ama.

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