«O homem não difere do animal senão em saber que o não é. É a primeira luz, que não é mais que treva visível. É o começo, porque ver a treva é ter a luz dela. É o fim, porque é o saber, pela vista, que se nasceu cego. Assim o animal se torna homem pela ignorância que nele nasce. »
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«O princípio da ciência é sabermos que ignoramos. O mundo, que é onde estamos; a carne, que é o que somos; o Diabo, que é o que desejamos esses três, na Hora Alta, nos mataram o Mestre que estivemos para ser. E aquele segredo que ele tinha, para que nos convertêssemos nele, esse segredo foi perdido.»
«Também eu, minha senhora, sou a Estrela Brilhante da Manhã. Era-o antes que João falasse, porque há átomos antes de átomos, e mistérios anteriores a todos os mistérios. Sorrio quando pensam (penso) que sou Vénus em outro esquema de símbolos. Mas que importa? Todo este universo, com seu Deus e seu Diabo, com o que há nele homens e de coisas que eles vêem, é um hieróglifo eternamente por decifrar. Sou, por mister, Mestre da Magia: não sei contudo o que ela é. »
«Há, minha senhora, com respeito ao que sucede neste mundo, três teorias distintas: que tudo é obra do Acaso, que tudo é obra de Deus, e que tudo é obra de várias coisas, combinadas ou entrecruzadas. Pensamos, em geral, em termos da nossa sensibilidade, e por isso tudo se nos envolve num problema do bem e do mal; há muito que eu mesmo sofro grandes calúnias por causa dessa interpretação. Parece não ter ainda ocorrido a ninguém que as relações entre as coisas supondo que haja coisas e relações são complicadas demais para que algum deus ou diabo as explique, ou ambos as expliquem.»
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«As aspirações vagas, os desejos fúteis, os tédios do vulgar, ainda quando o amamos, os aborrecimentos do que não aborrece tudo isso é obra minha, nascida de quando, deitado à margem de grandes rios do abismo, penso que também não sei nada. Então o meu pensamento desce, eflúvio vago, às almas dos homens e eles sentem-se diferentes de si mesmos. »
«Sou o eterno Diferente, o eterno Adiado, o Supérfluo do Abismo. Fiquei fora da Criação. Sou o Deus dos mundos que foram antes do Mundo os reis de adãm que reinaram mal antes de Israel. A minha presença neste universo é a de quem não foi convidado. Trago comigo memórias de coisas que não chegaram a ser mas que estiveram para ser. (Então face não via face, e não havia equilíbrio.) »
«A verdade, porém, é que não existo nem eu, nem outra coisa qualquer. Todo este universo, e todos os outros universos, com seus diversos criadores e seus diversos Satãs mais ou menos perfeitos e adestrados são vácuos dentro do vácuo, nadas que giram, satélites, numa órbita inútil de coisa nenhuma.»
Fernando Pessoa ‘A hora do diabo’ Edições Teresa Rita Lopes Assírio & Alvim