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Ars Gratia Artis: Circo de Hades

Abrem-se as cortinas; o que havia mesmo um era o silêncio e uma espiral toda em arames de mercúrio que fazia vezes de um caminho, no extremo meio do deserto. Seguindo através da espiral, vendo por olhos de outro, outro estranho nada. Escuro, úmido, grave. Tudo se iluminou em agradável chama, permitindo-me ver: tendas com entradas inconsistentes, distantes em distâncias e por discrepâncias; as aberturas pareciam seduzir ao espetáculo. Mesmo chamativas, eram plúmbeo chamariz em infinitas sutilezas de todo inverso espectro das mais belas cores.

Um acrobata – colossal – de macacão preto e amarelo, de ossos elásticos e longos, dançava, sinuoso, alheio ao silêncio das pedras que o rodeavam. Tinha inscrito em seu peito – em cicatriz atroz – ‘O Rastro’ e sorriu-me, seu olho esquerdo costurado, inflamado, mexia-se; apontando uma entrada: lá, era toda um vórtice… e segui, onde havia centenas de crianças de ouro… ouro flexível… vestiam roupas claras; agitadas, num galpão imenso, uma cidade? Que tamanho? Mas… entra um novo vórtice, dentro do vórtice: uma delas pulava sobre um saco de estopa, batia o pé, chutava, mas… as pisadas esmagavam… e em turbilhão, vi destroçado pela jovem, no interior do tecido, um passarinho, morto, sem sangue. Morreu porque eu assisti? Ou porque a criança parou? Não senti culpa, não deu tempo, as saídas magnéticas forçaram outra atração.

Alguém segurava uma menina-balão, na outra mão um Bidente; o corpo dela era composto por formas cintilantes… contrastando com a vibração melancólica de seu sorriso artificial, flutuando apesar de sua composição de cristal. Seus olhos, fixos, como os de um cego. Oscilava, assim como o longo fio que a prendia. Numa fila, o único que percebi foi um médico sem aparência, que a fitava. Como se percebessem, os cristais alternavam tonalidades, matizes; ora uns, ora outros, como que requebrando linguagem. Eis que a loucura tomou o médico, agora quebrado; se esvaneceu e se foi, tão longe…

Adiante, transmuta um imenso Bidente crescente: o Portal. Um de meus olhos vê o farol da saída. O outro, costurado, inflamado, tornava natural. A roupa preta e amarela que usava era confortável e permitia andar em direção à espiral de arame, em dança alheia às pedras. O céu do deserto me saudava, como quem não enxerga. Tudo aquilo… de tão nobre, tornara-se atemporal… não obstante ser essencialmente infantil, poderoso e real. Minhas mãos batiam suas asas em direção às cortinas que se abriam, em meio às hastes, fugindo daquele teatro sem cena, àquela mercurial urobóros. Circo de Hades.

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