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Ars Gratia Artis: Trechos ‘O amor nos tempos do cólera’, de Gabriel Garcia Márquez

CAPA O AMOR NOS TEMPOS DO COLERA

“No fundo era um jogo de ambos, mítico e perverso, mas por isso mesmo reconfortante: um dos muitos prazeres perigosos do amor doméstico. Mas foi por causa de um desses brinquedos triviais que os primeiros trinta anos de vida em comum estiveram a ponto de se acabar porque um certo dia faltou sabonete no banheiro.

Começou com a simplicidade da rotina. O doutor Juvenal Urbino tinha voltado ao quarto, nos tempos em que ainda tomava banho sem ajuda, e começou a se vestir sem acender a luz. Ela estava como sempre a essa hora em seu morno estado fetal, os olhos fechados, a respiração tênue, e aquele abraço de dança sagrada sobre a cabeça… Depois de longos rumores de linhos engomados na escuridão, o doutor Urbino falou consigo mesmo:

– Faz uma semana que estou tomando banho sem sabonete – disse.

Então ela acabou de acordar, lembrou, e rolou de raiva contra o mundo, porque na verdade tinha esquecido de substituir o sabonete do banheiro. Tinha notado a falta três dias antes… Para dizer a verdade, não tinha se passado uma semana, como ele dizia para lhe agravar a culpa… e a fúria de ser apanhada em falta acabou de enraivecê-la. Como se costume, se defendeu atacando.

– Pois eu tenho tomado banho todo santo dia – gritou fora de si – e sempre tem havido sabonete.

(…)

Uns ressentimentos mexeram em outros, reabriram cicatrizes antigas, transformaram-nas em feridas novas, e ambos se assustaram com a comprovação desoladora de que em tantos anos de luta conjugal não tinham feito mais do que pastorear rancores.

(…)

Ao fim de quatro meses, ele se  deitou para ler na cama matrimonial enquanto ela não saía do banho, e pegou no sono… Ela o sacudiu pelo ombro, para lhe lembrar de que devia ir para o escritório, mas ele se sentia tão bem outra vez na cama de penas dos bisavós que preferiu capitular.

– Me deixa ficar aqui – disse. Tinha sabonete, sim.” p. 42

Trecho 2: “De tanto conhecê-las em suas incursões de caçador solitário, Florentino Ariza acabaria por saber que o mundo estava cheio de viúvas felizes… Mas naquelas missas de solidão iam tomando consciência de que eram outra vez donas de seu armário, depois de terem renunciado não só ao seu nome de família como à própria identidade, e tudo isso em troca de uma segurança que não foi mais do que mais uma de suas tantas ilusões de noivas. Só elas sabiam como pesava o homem que amavam com loucura, e que talvez as amasse, mas que tinham tido que continuar a criar até o último suspiro, dando-lhe de mamar, mudando-lhe as fraldas borradas, distraindo-os com historinhas de mãe para lhe aliviar o terror de sair de manhã e dar de cara com a realidade. E no entanto, quando o viam sair de casa instigado por elas próprias a enfrentar o mundo, então eram elas que ficavam com o terror de que o homem não voltasse nunca. Isso era a vida. O amor, caso houvesse, era uma coisa à parte: outra vida.” p. 251

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