‘Acordou de manhã cedo
Quem rasteja o chão tem medo
de ver gavião voar
…
Montou no vento
Pra ouvir o que o vento ensina
Toda ave de rapina
Entende o vento falar’…
O Gavião – Mestre Ambrósio
É de meu costume vagar, vagar com direção, ir sempre em frente numa frente que é só caminho e onde curvas e retas e todas as nuances de seguir no espaço são indistintas.
Sou a Presença do Guardião, tudo é alimento na fome, atenção é mesmo no descanso, os olhos são as penas, as penas o bico; as garras, os céus e meu vertiginoso intento, voo sem corpo. Sou a Presença do Gavião, mais que um corpo, todos os seres que voam e caçam, todo o olfato até do que não existe é beleza e é dilema.
Ouço e farejo saberes e campinas… e esses humanos… se instigam, mastigam um nobre irmão de pena nesse lugar chamado França, lhes dão nome ‘ortolan’, fazem do bicho livre, bicho pra ser extinto, comem tudo, só deixam o bico. Maldosos… cantam que seus idosos têm tais manias, mas transmitem aos seus filhotes aos montes tais torpes ‘artes’… entre seus dentes, ossos, cabeça, patas e carne.
Subi para além das mortes, subi ao inferno das aves. Incandesci aos sentidos ferrenhos, fui invocado entre os Maxakali e de mim falaram os Tikmũ’ũn. Ultrapassei as canções esquecidas, obtive a redenção do renascimento e lá, apenas senti.
De volta ao invisível soube, pelo frêmito que chegou às minhas fiéis asas, que crianças daquela França aprenderam qualquer som incorruptível e estranho, impossível de ser descrito ou ensinado que, ao ser dito, invadia as más correntezas dos que tanto maltratam nossos irmãos, invadindo suas vidas e as expulsando repentinamente.
De meus mundos, minha visão abarca todos os fins e começos de todos os voos. Chamam-me novamente em Invocação e levo a amizade aos nobres dentre os homens. As amizades entre nós, nossos tempos e nossas dimensões é como traduzir-me a mim mesmo enquanto se traduzem a si mesmos e nessa noite nos encontramos e somos felizes, à luz da fogueira sagrada.
Sou a Presença do Guardião, tudo é alimento na fome, atenção é mesmo no descanso, os olhos são as penas, as penas o bico; as garras, os céus e meu vertiginoso intento, voo sem corpo.
Há tempos mais que sem fim longe de mim se foram quem nos chamavam… e, de alguma forma sinto pelo frêmito em minhas penas, sinto que parte da palavra perfeita que me faz ir aos homens estava naquele som, aquele som das crianças da França, aquele ruído perdido, impossível de palavras, histórias distantes das fogueiras, das águas claras, do sustento da paz, Kutex kopox.
*’Canto vazio’, na língua dos povos Tikmu`un