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Cultura: alimento da alma e do saber que resiste às pedras do caminho

Fhernanda Fernandes, Rosa Marya Colin, Leny Andrade e Indiana Nomma no show ‘Quadra de Damas’ do Diário do Rio Musical (Foto: Marcelo Castello Branco)

Por Claudia Mastrange

Um país se faz com homens e livros. À frase do escritor Monteiro Lobato podemos acrescentar: se faz também com música, teatro, cinema, dança… cultura! Porque, na verdade, ‘pão e circo’ se complementam na construção de uma vida mais digna. Mas, no nosso Brasil, com tantos problemas sócio-econômicos, onde a maioria não tem nem o básico – como água potável e saneamento –, trabalhar com cultura, buscando investimentos e a devida valorização das artes e do conhecimento, é um tremendo desafio.

Atualmente, o lema de aristas, produtores, empresários das artes é arregaçar as mangas para realizar seus projetos, independente das leis de incentivo fiscal, e criar novas frentes de trabalho, já que o apoio do poder público tem sido cada vez mais reduzido. Ano passado o governo federal anunciou que iria priorizar investimentos de patrocínio da Petrobras em projeto ligados às áreas de ciência, educação e tecnologia. Com isso, algumas das iniciativas que contavam com uma parceria de muitos anos com a empresa deixaram de receber verbas da estatal, como o Festival do Rio, o Anima Mundi, o Prêmio da Música Brasileira e, mais recentemente, o Teatro Rival, no Rio.

Símbolo da resistência, o Rival acaba de firmar parceria com a refinaria carioca Refit e agora assina Rival Refit. Sob a gestão de Ângela Leal, o teatro, que completa 86 anos em 2020, tornou-se o berço de gerações da Música Popular Brasileira e espécie de lar para artistas de todos os estilos e gêneros. “O Teatro Rival foi inaugurado em 1934, com a peça ‘Amor’, de Oduvaldo Viana, estrelada por Dulcina de Moraes e Odilon Azevedo. Estreamos com ‘Amor’ e isso, por si só, é emblemático. É o amor que nos move. O amor por nossa cultura – e toda sua maravilhosa diversidade. Amor e respeito pela arte, pelos artistas, funcionários e público. A cultura é a alma do povo, e o Rival faz parte dessa alma. Por isso, a casa firma com nova empresa patrocinadora a fim de valorizar nossa carioquice e fortalecer nossa resistência cultural”, afirma a atriz Ângela Leal, dona do espaço, feliz com a parceria.

As empresárias Liliane Xexéo e Jackeline Barroso (Foto: Arquivo pessoal)

Também exemplo de gente que faz é a empresária Jackeline Barroso, que junto com os sócios Eduardo Pires e Liliane Xexéo, movimentam a cena artística carioca. “Ano passado produzi as peças ‘DezEncontros’ e ‘Mundo Ideal’, que ficaram em cartaz simultaneamente no Shopping da Gávea. “Com ‘DezEncontros’, de Alessandro Marson, fizemos também turnê em 2018 pelo interior do Brasil e São Paulo capital totalmente sem apoio ou patrocínio. Já ‘Mundo Ideal’ teve patrocínio da empresa Equívoco”, explica Jackeline.

“A cultura sempre sobreviveu. Sobreviveu a todos os governos! Sobreviveu a Nero!! [risos] Nunca foi fácil fazer cultura num país que jamais priorizou educação e cultura. Cada época teve a sua dificuldade, agora não é diferente! Investir em arte nos tempos atuais é para os fortes. O melhor caminho é firmar parcerias empresariais com os que entendem o valor da arte e da cultura e que se encontram dispostos a unir seus nomes e produtos de forma independente de qualquer incentivo governamental. Outro caminho é ter coragem e investir do próprio bolso. Como acabei de fazer. Não é fácil, mas uma nova forma de pensar a cultura está surgindo. A independência cultural se faz necessária neste momento. Sou otimista na vida, logo só posso esperar o melhor de 2020”, afirma Jackeline, que já tem novos projetos de audiovisual em andamento.

Formação de plateia e arte gratuita para 10 mil pessoas

A produtora cultural Ayala Rossana trabalha com teatro, sempre focando no lado social e em formação de plateia. Começou a desenvolver esse lado quando morava no bairro de Honório Gurgel e montou uma biblioteca em que fazia exibições de cinema, com pipoca e debates. “Comecei a levar grupos de teatro para se apresentarem lá. Fui vendo a demanda que só crescia e a dificuldade de levar cultura para Baixada Fluminense e zona norte do Rio. Acabei iniciando uma rede de pessoas, pois ganhava muitos ingressos e passei a levar os grupos de moradores, estudantes para o teatro”, conta ela que, em parceria com o Marcos Frota Circo Show, já levou cerca de 10 mil pessoas para assistir o espetáculo circence gratuitamente.

Produtora cultural Ayala Rossana (Foto: Arquivo pessoal)

Diversas produções oferecem muitos ingressos porque sabem que Ayala privilegia a formação de pateia de forma consciente. “É gente do Morro dos Macacos, Morro do Caves, da Pedreira… Quero levar o pessoal que não tem mesmo dinheiro pra pagar e não tem acesso. Nesses lugares a cultura demora a chegar. Já levei pessoas que nunca haviam pisado no teatro. É muito emocionante a cara de surpresa e felicidade delas. Levei moradores de vários abrigos da Prefeitura, com seus filhos adolescentes para ver ‘Saltimbancos’, em que atuei. Eles ficaram fascinados. Isso não tem preço. É fazer a nossa parte”, diz ela, ressaltando que, como agenciadora cultural, se sente no dever de destinar sempre 10% de ingressos das produções com que trabalho para esse segmento social menos favorecido.

O jornal Diário do Rio também assumiu o compromisso com a cultura, mesmo sem o suporte das leis de incentivo. Em 2019, o jornal estreou o projeto Diário do Rio Musical, com a proposta de resgatar grandes nomes da MPB. A estreia, no Teatro Rival, coube a Tunai e Wagner Tiso, com o show ‘Saudade da Elis’, em 3 de setembro. Na segunda edição com o ‘Quadra de Damas’, em 10 de dezembro, as divas Fernanda Fhernandes, Indiana Nomma, Leny Andrade e Rosa Marya Colin fizeram um show simplesmente inesquecível. Um brinde à cultura, que sobrevive, resiste e se expande por conta de empreendedores, como a diretora do Diário do Rio, Ana Cristina Campelo, que acreditam que vale a pena investir no poder transformador das artes.

Wal Schneider, ao centro (Foto: Jorge Paulino)

A palavra é a maior arma de resistência
Por Wal Schneider, ator e diretor do Projeto Social No Palco da Vida

Desde que vim de Tabuleiro do Norte, interior do Ceará, na carona de um caminhão de melão com R$ 25 e dois livros no bolso, vinha com um sonho de ser artista no Rio de Janeiro. E deu certo! Hoje vejo que, após 25 anos, muitos sonhos e metas foram alcançados, sempre acreditando na possível arte. O teatro foi e ainda é minha grande ferramenta de tocar o ser humano. Vejo que as pessoas precisam e vão precisar mais ainda do contato com o ser humano. Ver o artista não só pelas telas da televisão, mas em carne e osso. Quem faz arte deve ter ousadia. E é isso que a cada dia digo aos meninos e meninas do projeto No Palco da Vida, a Primeira Escola de Artes na Região da Leopoldina, zona norte do Rio, e que há mais de 10 anos oferece aulas gratuitas para crianças, jovens, adultos, idosos e pessoas com necessidades especiais.

A grande luta a cada dia é estimular meninos e meninas que passam pelo Palco a enxergar que podem levar seus talentos além dos muros de Olaria e comunidades, conscientizando-os através da leitura e incentivo à criação. No projeto, chegam pessoas que nunca apreciaram um livro. Apresento a elas as palavras, de uma maneira mágica, que eles acabam vendo o quão importante é a leitura, ainda mais com nossa biblioteca com um acervo rico com mais de nove mil livros de arte, filosofia e história, vinis e CDs, além de objetos que contam a história do teatro brasileiro.

O teatro também humaniza. Antes dos alunos entrarem no processo de espetáculos passo a regra do trabalho em equipe, ninguém brilha sozinho. Após as aulas e os intervalos eles limpam o espaço, servem o lanche e dividem com o colega. A cada dia as pessoas precisam se olhar e esse ato eles não precisam ter somente dentro do teatro, mas em casa, com os amigos e nas escolas, onde podem surgir as grandes revoluções. Mudar o ato de estar no mundo faz o artista crescer, e esse muda pelo prazer de melhorar.

Desde o início do mundo vemos os artistas e artísticos querendo tornar as civilizações mais justas, igualitárias, sem paradigmas ou preconceitos e, por isso, são tão poderosos. Temos um grande poder dentro de nós, cabe a nós compreender como podemos nos permitir entrar em contato com ele, sendo na arte, nas empresas ou nas ruas. E não podemos limitar, a vida é um fluxo, e esse fluxo não tem raça, cor de pele, opção sexual, opinião política, é o ser humano. Na medida em que enxergamos o ser humano, a mágica da vida começa a acontecer.

Em tempos como esses, precisamos falar de sonhos e possibilidades, porque os problemas são apresentados todos os dias, na TV, jornais e redes sociais. Para um país como o nosso, se a cada dia as possibilidades forem aparecendo com mais frequência, talvez o povo se sensibilize e tenha mais fé e motivação interna para mobilizar-se. A corrente do bem e o Brasil têm milhões de pessoas que sonham em realizar seus sonhos, a oportunidade também deve ser apresentada. A arte e educação têm o poder de fazer essa ponte para o próximo, de dar voz às pessoas.

No projeto chegam meninos tímidos, ou com alguma deficiência, e a gente adapta os espetáculos, quando colocamos que há outras formas de se expressar e eles começam a ter mais confiança em si. “Eu esperei 52 anos para poder dançar num palco, não é qualquer um que espera isso tudo. Graças ao projeto consegui realizar esse sonho, e ao lado do meu filho”, Conta Sylvia Mariano. “Aqui no palco percebi que limpar o espaço não é pra mim, vi que o trabalho em equipe é o principal que a gente tem que ter. Até mesmo pra conhecer melhor o colega que vai estar em cena”, relata Pietra Dupin, de 10 anos.

Fazer arte e cultura nos tempos atuais é amar, acima de tudo, ao próximo a ponto de fazer escutar, ver, tocar, pensar, falar, ter opiniões. E isso fazemos através de uma cena, uma tela, uma música, um suspiro. Ser artista hoje é amar e ser a prova viva da resistência.

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