Justo agora que você decidiu ir embora.
Justo agora que eu planejei renovar o guarda-roupa e deixar de fumar.
Justo agora que quase me desapaixonei por completo, como um torrão de açúcar imerso em café expresso.
Justo agora que você pintou as unhas da mão de cor de renda, ou seria francesinha?
Justo agora que Deus ocultou-se diante de meus olhos órfãos.
Justo agora que o milagre da tua vida renovou-se de súbito e o viçoso andar de menina sofreou o cansaço do andar sobressaltado.
Justo agora que um menino no semáforo da avenida Brás Leme quis vender chocolate em barras.
Justo agora que a pressão arterial subiu e as restrições alimentares fizeram da minha vida uma sopa rala, muito insossa.
Justo agora que o futebol ficou emocionante de novo e o jovem em mim reapareceu e pulou e gritou de alegria com o último gol no derradeiro campeonato.
Justo agora que você me ligou do Havaí e eu achei que fosse trote e desliguei rapidamente, enquanto a rua transbordava e meu carro ficava preso à correnteza, aqui perto de casa.
Justo agora que eu havia prometido um jantar no japonês sofisticado e caro pra caramba.
Justo agora que tenho saudade de você. E do calor dos beijos. E das palavras convidativas ditas na cama enluarada. E do riso fácil que me estremece e obriga a enxugar as lágrimas escapadiças. E do canto interminável durante o banho, fingindo ser a própria Nina Simone.
Justo agora que a casa ficou vazia e até o cachorro olha de soslaio, desconsolado e silente à tarde melancólica.
Justo agora que eu emagreci cinco quilos e troquei a armação dos óculos por outra azul transparente, da marca Chilli Beans, bem bonita.
Justo agora que revi o vídeo onde você dava cambalhotas engraçadas nas areias quentes de Canoa Quebrada.
Justo agora que não tenho mais companhia para maratonar os filmes da década de cinquenta, tipo “Vidas Amargas” com o James Dean.
Justo agora que comecei a tomar ansiolíticos e o médico ficou apreensivo, porque achou que eu virei um cara meio doidão da cabeça. Mas não sou doidão, não, porque só começo a uivar e gritar “Independência ou Morte!” depois da meia-noite.
Justo agora que Freud não me interessa mais.
Justo agora que a filosofia me parece coisa de gente doidivanas e a essência de tudo consiste em dormir muito, jogar xadrez e ler poesia alemã.
Justo agora que as estradas da Califórnia derreteram ao sol do verão e o rock voltou finalmente a existir.
Justo agora que vi uma foto sua no computador – uaaaau! A mocinha morena de olhos grandes dançava loucamente sob o azul dos dias.
Justo agora que sinto que envelheci vinte anos na recente e miserável primavera solitária.
Justo agora que você escreveu um enigmático texto no direct, citando Salinger e Kafka e prometeu voltar para casa no sábado que vem. Aleluia!
Justo agora que fiquei acordado por três dias e por três noites inteiras, devaneando.
Justo agora que abro a porta para receber-te como uma divindade egípcia, de braços estendidos e generosos.
Justo agora que presencio a tua face de luz, aproximando-se de mansinho, até estremecer de alegria, enovelando-se junto a mim como uma gatinha assustada e há tempos perdida.