A médica veterinária Helena Von Prass já tinha passado por poucas e boas nesta vida agridoce que notabiliza amiúde a classe média brasileira. O pai italiano havia sido um homem sisudo e violento que, não raras vezes, ameaçava a menina com gestos ríspidos e palavras tonitruantes que demonstravam, acima de tudo, a personalidade de alguém ressentido com as mazelas de sua própria existência de funcionário público mal remunerado e sem viço. A mãe, filha de judeus e russos, desde cedo demonstrou possuir traços claros de esquizofrenia, o que a levou à internação precoce numa clínica psiquiátrica especializada em casos limítrofes, localizada na zona oeste de Maringá.
Helena não teve irmãos e muito tenramente aprendeu que o melhor lugar do mundo para proteger-se dos destratos e da loucura reinantes em casa era o refúgio para dentro de si mesma, encapsulada pela auréola inexpugnável da mais estrita solidão. A despeito da invencível introspeção e afastamento das gentes, ou por causa disso mesmo, a jovenzinha adquiriu com o passar do tempo, uma notável inteligência e capacidade imaginativa para deambular e escapar da realidade intolerável, sonhando cotidianamente com outros mundos possíveis, onde o azedume não se fazia presente.
Curiosamente e, ao contrário do esperado, Helena Von Prass exibiu notável talento pragmático quando passou em nono lugar no vestibular para medicina veterinária na PUC, onde desenvolveu por completo seu antigo amor pelos bichinhos. Na universidade, o amor realmente expandiu-se para esferas elevadas, ontológicas, quando encontrou Ribamar e por ele se apaixonou com a intensidade juvenil que caracterizava sua psique feminina, ávida por compreensão e equilíbrio afetivo. Eles se casaram antes mesmo do final dos estudos superiores e viveram extraordinariamente companheiros, até o dia em que o jovem veterinário foi diagnosticado com uma doença rara e degenerativa que o levaria a óbito em menos de quatro anos. Neste ínterim, tiveram duas filhas, Ana Clara e Mariana, ambas determinadas e emotivas como a mãe e sorridentes como o pai.
A dor pela perda do marido foi devastadora e pela primeira vez em muitos anos, ela sucumbiu à capciosa tristeza, nublando de tal forma a alma ferida, que olheiras fundas e enegrecidas passaram a sombrear o rosto cada vez mais magro e inexpressivo. Os anos se sucederam e como dizem, o tempo tudo cicatriza, principalmente porque a sofrida veterinária pôde contar cotidianamente com o auxílio prestimoso das duas filhas que continuavam a morar, com indisfarçável prazer, na casa da mãe. Entretanto, no dia 22 de janeiro de 2022 tudo mudou. Eis o que aconteceu:
Helena Von Prass e as filhas moravam numa rua calma, mas repleta de pequenas casas aconchegantes, bem ao estilo dos paranaenses e certa tarde houve um acidente: um pedreiro havia caído de uma laje em construção e aparentemente tinha quebrado a perna ou coisa que o valha.
Os bombeiros foram chamados imediatamente, mas quando chegaram para prestar socorro se depararam com o carro de Mariana, a filha mais velha de Helena, impedindo a passagem até o homem acidentado.
Os vizinhos procuraram mãe e filha, entretanto apenas Helena encontrava-se em casa. Ela entrou no carro recém comprado pela filha e, como não estava acostumada com o câmbio automático, precipitou-se e, ao invés de dar marcha à ré, avançou pela calçada, atingindo um menino de sete anos que assistia ao acontecimento. A criança, filho de uma amiga bastante próxima da família Prass, faleceu ali mesmo no meio-fio.
A veterinária horrorizada não resistiu à notícia e entrou em estado de choque, chorando compulsivamente em completo desespero. Os meses se multiplicaram, inúmeros psiquiatras foram procurados, remédios foram receitados na casa das dezenas, mas a melhora não veio, ao revés, Helena Von Prass caiu numa espécie de torpor que a fazia passar dias e noites imóvel, prostrada silenciosamente no quarto de dormir.
Mariana e Ana Clara não sabiam mais o que fazer com a mãe, quando certo dia pela manhã se depararam com o absolutamente inusitado: Helena Von Prass adentrou a cozinha inteiramente maquiada e muitíssimo bem vestida, trajando tailleur preto e amarelo, brincos de ouro e scarpins italianos. Além disso, cantarolava risonhamente e repentinamente, seu semblante estava completamente transformado, exibindo saúde e beleza nunca antes vistas.
– Vou voltar à clínica, sentenciou como um pássaro livre e ressuscitado.
Atônitas as moças perguntaram à mãe qual o motivo para tamanha mudança. E a resposta ainda hoje intriga e fascina familiares, amigos e terapeutas:
– Um anjo me sussurrou no ouvido: Helena, esquecer é uma dádiva e a vida a partir de agora não pesará mais que a mão de uma criança em teus ombros.