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Lâminas do Cotidiano: A velha casa

Depois de cinquenta anos volto à velha casa. Ela está inalterada, graças aos esforços dos empregados que a mantiveram cotidianamente sob cuidados de zeladoria.

Dirijo-me à rua contígua à avenida principal do bairro e entro de maneira religiosa no interior silencioso. Transponho o portão e percorro o caminho palmilhado por cerâmicas e que vai dar diretamente na sala de estar. Sei que o interruptor está do lado esquerdo da porta, bem abaixo do quadro com a gravura de Santo Antônio. Dou dois passos tímidos, agacho-me e sinto o tapete felpudo entre os dedos. Este mesmo tapete que recebeu tantas vezes o menino franzino em seu leito macio, transportando-o para as águas de uma Amazônia etérea inventada pelo pai brincalhão.

Sons penetram meus olhos sob a luz tépida da sala iluminada. Então lembro-me da festa de final de ano, quando todos os parentes se reuniam na habitação espaçosa, tios, primos, os velhos avós. E apesar das ranhuras que mancham as relações pessoais, havia verdadeira alegria naquele ambiente.

As mulheres chegavam exultantes com seus vestidos coloridos, cumprimentavam-se e iam cuidar das delícias reservadas para o jantar. Os homens, bem mais morigerados, abraçavam-se e davam as boas-vindas aos recém-chegados, sempre com algum gracejo na ponta da língua, tipo:

– E aí, João? Seu time perdedor continua freguês do São Paulo Futebol Clube?

– Marcelo, conta quem foi o barbeiro que fez este estrago aí no seu cabelo que a gente vai encher o cara de porrada.

E a noite transcorria plena de camaradagem, jogos de baralho, brincadeira de esconde-esconde e a televisão ligada sem que ninguém prestasse atenção. Agora vou à cozinha e observo o cantinho do chão bem perto do fogão verde esmaltado. Era o lugar preferido dos cães que me viram, do Kimba ao Fred, ir ao colégio pelas manhãs, depois voltar da faculdade à noite e num outro momento apresentar a linda namorada magrinha aos pais curiosos. Cãezinhos que também presenciaram a chegada do jovem extasiado com o primeiro salário de professor e o adulto de vinte e poucos anos desterrado, sufocado pela depressão.

Entro agora vagarosamente no quarto de meus pais. Toco o interruptor desta vez do lado direito e imagens acorrem à minha mente, fazendo latejar a parte lateral da cabeça. Busco com o pensamento o alto do teto, a verticalidade do tempo que desconstrói pedaço por pedaço nossa existência terrestre. Afinal de contas, eu era a criança que nas noites geladas ia dormir com seus pais e se engalfinhava debaixo das cobertas suficientemente grossas para esquentar dois adultos e um poeta mirim. Eu era o pequenino balbuciando as primeiras palavras, tropeçando nos móveis e dando adeus com as palmas das mãos estendidas como se fazia nos desenhos animados da época. Ou ainda, o menino feliz na noite de Natal, quando o avermelhado Noel aparecia trazendo TODOS os brinquedos pedidos meses atrás.

Então, saí um pouquinho para o sereno do jardim e avistei ao longe o balanço de alumínio dependurado na goiabeira. Titubeei, mas sentei-me na placa fria. 

– Ui! – Parecia ser de gelo. 

Projetei meu corpo para frente e para trás velozmente. 

– Êba! 

Agora estou voando e voando cada mais alto, até atingir o coração daquela nuvem disforme meio branca e meio azul, parecida com um elefante de trombas pensas.

De repente, sinto uma enorme tristeza, cesso o malabarismo pelo ar e reflito sobre a solidão de nossa condição evanescente. Fecho o portão da velha casa e ando até o carro. Na estrada paro no posto de gasolina, bebo café quente e mastigo um sanduíche de carne como se fosse a carne saborosa de uma vida, minha própria vida desaparecida.

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