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Lâminas do Cotidiano: Construindo músculos

Explodir o peitoral fazendo supino reto, quatro séries de doze repetições até a exaustão, até a falha. Depois aumenta-se o peso mais e mais e mais, setenta quilos de cada lado, até a exaustão, até a falha. O corpo tonifica-se, enrijece-se linearmente, os músculos saltam como se fossem sementes espocando no espaço infinito e há, admitamos, um velado prazer masoquista neste ritual diário de treino hipertrófico: o prazer de desconstruir uma a uma as fibras que alinhavam os contornos dos órgãos para vê-las a seguir recompostas, fortes, benfazejas, torneando os bíceps, a panturrilha, a parte superior do abdômen.

E o suor escorre à farta, encharca a camiseta, incomoda os olhos compenetrados, há que limpá-lo imediatamente, mas não adianta quase nada. Lá vem a próxima rodada de agachamentos e leg press, então a pele arde, queima, palpita, e busca respiro, pausa, água. Mas, é preciso nada conceder à dor, à frouxidão, ao cansaço. Malhar é estar na guerra em busca da saúde e da beleza.

E de fato acontece! A cintura fica afinada, enquanto os braços e as pernas ganham inacreditável volume, são agora largos, rijos, cresceram ao sabor do sono, da noite reparadora, dos anjos que visitam os guerreiros no descanso merecido. E recusamos o álcool, cigarros, doces, massas, farináceos de toda ordem e sabor, recusamos a boca deleitando-se com o gozo momentâneo. A alegria está em outro lugar, em frente ao espelho contemplando o sacrifício sendo recompensado. Narciso obcecadamente olha-se a si mesmo e orgulha-se da disciplina, do destemor, da ousadia de abnegar a vontade dos sentidos entrevista, sublimada.

Então, o corpo vai esculpindo-se ao longo dos meses, desde os membros inferiores até as portentosas dorsais.

Músculos são iguais à saúde, alardeiam os especialistas da nutrição e há boa dose de verdade na afirmação. Mas, o que nem sempre se observa é a quantidade de gente nas academias lutando contra a depressão, o divórcio, as doenças na família, o insidioso desemprego, a falta de sentido da vida, a perda da espiritualidade. Muitas vezes os rostos escondem segredos, como os soldados nas trincheiras disfarçam o medo pânico da morte e da solidão.

Por hora continuemos resolutos. Então, mais uma série e outra e outra. É preciso saber viver, como diria o rei, mas tudo, afinal de contas, são opções, escolhas existenciais para amoldarmo-nos aos talentos cósmicos dados de maneira benévola pelos deuses ocultos. Os gregos ensinavam isso antes do advento do cristianismo e, por isso, recordemos a título de homenagem aquele que melhor retratou a magnificência da fisicalidade humana: Fídias, o escultor.

Tarde da noite e gente vem chegando aos borbotões. Todos querem fazer parte do exercício emancipatório, todos venceram a inércia e a procrastinação. São os heróis da labuta entre halteres e flexões, pranchas e alongamentos.

Diriam os críticos que tamanha energia não é dispensada à musculatura da inteligência e da cultura. Eles estão certíssimos, entretanto há uma nesga de disciplina estoica na arte de aperfeiçoar sistematicamente a compleição física. Talvez nesta luta diária para construir músculos, esquecemos por átimos nossa ruína e passamos a vislumbrar como num sonho auspicioso nossos corpos incorruptos, ressurretos cingidos à luz da eternidade.

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