O dia nasceu nublado e surpreendentemente frio para novembro. Apesar da chuva fina, resolvi tomar coragem, calçar o tênis, vestir a calça de moletom e a jaqueta corta-vento novinha em folha e ir caminhar meus sete quilômetros diários. Por conta do tempo ruim, havia pouquíssima gente na rua e o trânsito estava uma maravilha, o que permitiu chegar à trilha arborizada num instante. Desci do carro e a passos lentos atravessei a avenida central do bairro, para iniciar o trajeto feito todo santo dia para benefício da minha saúde física e mental.
Dias assim, escuros e melancólicos, possuem aquela aura de mistério que me fascina desde a infância e, além do mais, hoje comemora-se o dia de Finados no Brasil, quando lembramos de nossos mortos.
Quase displicentemente, eu percorria o longo caminho ladeado por árvores frutíferas, principalmente goiabeiras e jabuticabeiras quase centenárias e o vento soprava mais forte do que o normal, fazendo trepidar as folhagens verdes e as outras infelizmente ressequidas. Adoro caminhar ao sabor aventureiro do vento. Aliás, os filósofos gregos diziam que ele representa o espírito dos deuses e as nuances incontroláveis de seus temperamentos, ora tranquilos e pacíficos, ora tumultuosos e destrutivos.
Pensei, então, nos meus mortos e como vamos, ao longo do tempo, esquecendo os rostos e as vozes que amamos um dia. Fiz um esforço de memória, concentrei-me e lá estavam eles todos de volta.
Bem-vindos, seus sumidos! Quantas saudades, quanto tempo vivido, separando nossas conversas, nossos risos. É como se eu estivesse nadando num rio e as pessoas falecidas ficassem perdidas nas águas que passaram ao longo da travessia. Mas o rio ainda é o mesmo, quero dizer: as águas que envolvem meu corpo são iguais às que plasmaram meus mortos e sem elas a vida simplesmente nunca chegaria a existir.
Mas, continuo a caminhar na trilha arborizada e, de repente, o sol aparece e eu me sinto feliz com sua presença. Percebo que as plantas também se entusiasmam e quase chegam a dar saudações efusivas ao astro luminoso. Resolvo me dar um presente e parar num charmoso café do outro lado da rua. Peço, olhando o cardápio encorpado, banana split gigante de chocolate e morango.
Uma jovem mãe entra no recinto arejado e ao seu lado, duas garotinhas idênticas. Parecem ter uns quatro anos e estão vestidas iguaizinhas, de macacão vermelho com faixas brancas nos ombros e têm fitas verdes prendendo os cabelos cacheados e muito loiros. Uma delas olha para meu banana split e eu gentilmente ofereço um tiquinho, mas a mocinha vira o rosto toda envergonhada. A mãe é pura felicidade, percebe-se pelo olhar, pelos sorrisos generosos, pelo encantamento de estar junto às meninas.
Novamente, o tempo muda, o sol despede-se e a chuva vem forte e aterradora. Lembro-me de que preciso ler ainda hoje um processo de trezentas e oitenta páginas e prolatar o mérito da causa. Vida de juiz de direito realmente é para os fortes.
Deixo o café e me despeço mentalmente da jovem senhora e das gêmeas. Mal sabem elas, mas já se incorporaram às águas que formam o rio de minha existência. Enfrento a chuva torrencial como um adolescente livre e cheio de energia. Sinto a calça de moletom derretendo e o tênis pesado como uma bola de chumbo. Estou encharcado.
Em casa, tiro toda a roupa e vou direto para o chuveiro, sem dar importância à feição de censura da minha esposa. O banho é quente, relaxante, dura quase vinte minutos. Penso, então, no passeio, nas árvores regozijando com o sol e a chuva e na prosaica alegria de estarmos juntos de quem amamos. Penso ainda uma vez mais em grandes rios, nas vozes e nos rostos de quem vive além do espaço e do tempo humanos.
Rezo uma antiga oração católica e vou direto para o escritório. Preciso deslindar o processo, mas antes disso, quero escrever algo muito pessoal sobre memória e melancolia e oferecê-lo aos leitores neste dia de Finados.