Recentemente, foi destaque nos jornais de todo o Mundo a notícia da morte do fotógrafo suíço René Robert, de 84 anos, morto por hipotermia depois de desmaiar e cair em uma rua de Paris. Em uma das ruas mais movimentadas da capital francesa, René permaneceu desacordado por 9 horas sem ser ajudado por ninguém que passou por ele. Michel Mompontet, amigo de René, disse que o fotógrafo morreu por causa da “indiferença” das pessoas.
Causa de revolta e comoção no Brasil, a morte brutal de Moise Kabagambe, um jovem congolês de 24 anos, espancado até perder a vida por cobrar duas diárias atrasadas em um quiosque onde trabalhava, na Barra da Tijuca, no último dia 24, também foi marcada pela indiferença. Depois de espancado e morto, Moise também foi amarrado e, em seguida, deixado estendido numa escada que leva à areia da praia, onde ficou exposto à insensibilidade dos pedestres que por ali passavam.
René e Moise eram pessoas muito diferentes, vindas de realidades muito dessemelhantes. Enquanto René era um fotografo famoso, conhecido por retratar as grandes estrelas do flamenco contemporâneo, Moise era um refugiado político que veio para o Brasil para fugir da guerra e da fome, e aqui ganhava a vida como diarista. René foi morto por uma fatalidade. Moise por uma covardia brutal. No entanto, embora as causas que levaram as suas mortes sejam completamente distintas, ambos foram vítimas de um mesmo mal: a indiferença.
Enquanto René congelava na calçada da sempre movimentada Rua Turbigo, centenas de transeuntes fingiam não o ver. Indo e vindo das lojas de vinhos, cafés e restaurantes da região, na habitual pressa de chegar em casa vindas do trabalho, pessoas apáticas não foram capazes de desviar suas rotinas e estender as mãos a um homem estirado no chão em uma noite rigorosamente fria de inverno europeu.
E o que dizer dos jovens sorridentes vindos do futevôlei, daqueles vindos das academias com seus fones de ouvido e dos aposentados que caminhavam no calçadão descontraidamente que, à revelia daquele corpo negro amarrado e ensanguentado, seguiram o curso de suas vidas atropelando a realidade bem à frente de seus olhos?
Para Christian Dunker, psicanalista e professor do Departamento de Psicologia da USP, “a indiferença não se trata apenas de um efeito de distanciamento, nem apenas de uma incapacidade de pensar o outro, mas uma política, uma atitude de enfrentar conflitos pelo método da esquiva; pelo método de transformação da realidade ao invés da transformação de nós mesmos”. Ou seja, a indiferença surge como um efeito de uma disposição narcísica, um modo de enfrentamento de conflitos marcado pelo escapismo, pela negação da diferença, daquilo que causa mal-estar.
Marca da nosso cultura, a medicalização da vida tornou-se um mecanismo de analgesia das dores existenciais cujo anestesiamento produzido acabou por se estender às relações com a alteridade, fonte de constante mal-estar. Partindo da premissa de que me é hostil o que eu não conheço, o aspecto “protetor” do narcisismo resiste à diferença e estabelece fronteiras entre o eu e o outro. Dentro dessa lógica narcísica de negação daquilo que vem do outro, a inserção da indiferença se dá por meio do fechamento do indivíduo e sua demanda de anestesiamento do sofrimento, que culmina no prejuízo do estabelecimento dos laços sociais, num processo de crescente dessensibilização.