Nem todas as histórias começam com sorrisos ou terminam com respostas. Algumas deixam apenas perguntas no ar, pesadas, suspensas, como o silêncio que precede um trovão. Esta é uma dessas histórias.
Dona Alda, 78 anos, síndica do prédio em Moema, SP, era uma figura conhecida, mas não necessariamente compreendida. Discreta, de poucos amigos e menos palavras ainda, ninguém sabia muito sobre sua vida, nem sobre seu passado. Era dessas pessoas que parecem carregar consigo uma história antiga, mas enterrada sob sete chaves.
Numa noite fria, Fredi Jon, o seresteiro, recebeu um telefonema inesperado.
— “Quero uma serenata. Às 3 da manhã”, disse ela, com uma voz calma, sem afeto, quase como quem faz uma convocação, e não um pedido.
Fredi tentou argumentar, explicar que aquele horário poderia causar confusão, chamar atenção desnecessária. Do outro lado, o mesmo silêncio impenetrável de sempre, seguido de uma frase cortante:
— “Não se preocupe. Eles já sabem.”
Eles? Quem?
Após muita insistência, a serenata foi marcada para as 7h. O amanhecer daquele dia parecia diferente, como se o céu soubesse que algo incomum estava prestes a acontecer.
Fredi vestiu sua casaca, cartola e afinou o violão. Ao seu lado, a cantora, num figurino clássico dos anos 1920, com pérolas e um olhar distante, como quem participa de um teatro cujas falas desconhece.
Quando chegaram, lá estava ela: Dona Alda, surgindo e sumindo da sacada, numa coreografia silenciosa e perturbadora. Não acenava, não sorria. Apenas espiava, meticulosamente, a corporação da polícia militar que ficava do outro lado da rua. O olhar fixo, gélido, como quem espera… ou vigia.
Enquanto a música preenchia o ar, Dona Alda repetia o ritual: aparecia por alguns segundos, fitava os policiais, depois se retirava, desaparecendo no interior escuro do apartamento.
Mas não estava sozinha naquele jogo silencioso: os policiais, enfileirados na frente do quartel, também a observavam. Não trocavam palavras, não se mexiam. Apenas mantinham os olhos cravados nela, como cúmplices, ou sentinelas.
Quando a serenata terminou, Fredi, tomado pela curiosidade, arriscou uma aproximação. Dona Alda o recebeu à porta, não convidou para entrar. Apenas olhou nos olhos dele, inexpressiva, e disse:
— “O objetivo foi atingido, muito obrigado.”
Depois, fechou a porta, sem mais nenhuma palavra.
Fredi ficou ali, parado, com o violão nas costas, sem saber se aquilo tudo tinha sido um espetáculo, uma provocação ou… um aviso.
Até hoje, ninguém sabe o que realmente aconteceu naquela manhã.
Quem eram os policiais para Dona Alda? O que significava aquele olhar silencioso trocado entre eles? O que, afinal, foi “atingido”?
Ninguém mais viu Dona Alda sair do prédio nas semanas seguintes. Alguns dizem que se mudou. Outros, que continua lá, espreitando pelas frestas, como sempre fez.
Mas o prédio, aquele dia… nunca mais foi o mesmo.