Jornal DR1

O fantasma do gatinho e os três lados das coisas

Tem sido comum em meus passeios sentir-me como uma criança que percebe uma utilidade, para o futuro, em brincar de quebra-cabeças e
brinquedos de encaixe: hoje senti-me como essa criança que, num insight, vê uma família arrumando uma mudança na caçamba de um carro, encaixando estrados, madeiras, móveis… pensando na utilidade de brincar de encaixar coisas, na conveniência que será esse aprendizado na vida adulta. Essa mesma criança percebe que é esse mesmo o motivo de muitos adultos gostarem de brincadeiras de encaixe.

Num desses passeios, de relance, julguei ter visto um gatinho na rua. Tão rápida foi a imagem e seu desvanecimento que acredito ter sido um fantasma de um gatinho branco, creme e preto, desses vira-latas simpáticos. Acontece que o fantasma desse gatinho que vi na rua me remeteu a muitas ideias, porque me concentrei em sua aparição.

Loucura e normalidade, MAU e bom funcionamento, bem e mal,
justo e injusto, verdadeiro e falso e outros itens, na maior parte das vezes mais fáceis de serem distinguíveis. Os “dois lados da realidade”, porém, representam apenas mais um lado de uma realidade qualquer,
talvez de uma outra realidade de dois lados… as infinidades das combinações entre os caracteres binários da percepção da realidade
implicam, contrariamente a uma experiência da realidade e do mundo como um claro/escuro, simplesmente, numa experiência de momentos de acesso, de sujeitos e objetos de acesso, seus tempos, cores, memórias, desejos. Há um desejo onde há movimento, pois há um
impulso, uma direção. A conferência do sentido a esse impulso, qualquer que seja ele, é e sempre será arbitrária. Está e sempre estará no fluxo, na maior parte das vezes insondável, da Natureza.

O terceiro lado das coisas tem a ver com isso: essa “terceira margem
do rio” como o caminho que somos nós, pode ser esse ponto de percepção e de sensações que acessei, ao voltar de minha caminhada,
ao acreditar ter visto o fantasma de um gatinho; sensibilizei-me quanto
aos olhares de outros, tantos outros, perdidos de si mesmos, ansiosos
por amor, alheios às suas infinitas capacidades de acessos, jardins caminhando sobre asfaltos desertos, corações luminosos cerrados em seus cárceres de ternura.

Mas qualquer dia desses virá, na vida que vem, o fantasma de um gatinho para que, como num brinquedo de encaixe, após alguma dificuldade de acessos com atritos, seja formada uma imagem que remeterá para além de toda imagem; onde a solidão que nos acompanha a nós todos permanece, eterna, como o terceiro lado de todas as coisas.

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