Jornal DR1

O jardim das paixões desveladas

Certa noite um anjo desceu dos céus e foi dar nos meus sonhos, dizendo:

– Amanhã te concederei um magnífico privilégio somente concedido
aos tementes das chamas crepitantes do ápeiron. Tu poderás conhecer o segredo profundo que mora nos corações humanos. Com efeito, estes segredos ganharão vozes potentes como o rugido de um leão fecundo e somente tu saberás interpretar corretamente o que significam todos eles. Mas, atenção! As paixões desveladas só durarão um pedaço da manhã de verão, cerca de duas horas. Portanto, ao acordar prepara-te para emular o próprio Deus na arte de destamponar o mistério que homens e mulheres guardam consigo durante suas breves existências na terra.

Como jamais duvidei, por um instante que fosse, da verdade intrínseca dos sonhos, pus-me rapidamente a tomar meu café com pão na chapa e
imediatamente desloquei-me até o jardim ao lado do comprido corredor de pedras aonde as pessoas costumam caminhar. Sentei-me cuidadosamente no banco de madeira e esperei ansiosamente a passagem do primeiro transeunte, a minha esfinge de Tebas.

Mas para minha surpresa, a primeira criatura a passar por mim – uma senhora vestindo roupas esportivas – não produziu em meu coração quaisquer rugidos de leão, nenhuma paixão a ser desvelada. Ao contrário, seu corpo altaneiro apenas exalou no ar um delicado
perfume cítrico e nada mais. Foi então que percebi que nem todos os seres humanos possuem segredos inefáveis. Não, algumas mentes são previsíveis e anódinas tanto no que concerne aos hábitos comezinhos e aburguesados, quanto ao interior desespiritualizado.

A segunda passante foi uma menina de cerca de oito anos, altiva como uma miss universo exibindo os grandes olhos azulados e os cabelos loiros cortados à moda Chanel.

Oh! Agora o leão dentro de mim surgiu com volúpia e eu pude decifrar o que perturbava aquele jovem coração. Há cerca de duas semanas,
seu irmãozinho Hugo de quatro anos rasgou o vestido da sua boneca predileta e ela como vingança, escondeu o godzilla de plástico do garoto no jardim da casa, causando enorme alvoroço em toda a família.

Mal pude conter a gargalhada, mas aprumei-me imediatamente, quando ela passou por mim e me fuzilou com aqueles gigantescos olhos azuis.

Depois um homem vestido com o uniforme do Flamengo passou e outra mulher de meia-idade também, mas nada do rugido leonino aparecer novamente. Em seguida, avistei um garotão forte e moreno que andava sem camisa, certamente para notarem a enorme tatuagem de águia gravada no peitoral e em parte do tórax. Há dois meses ele descobriu um avançado câncer na região do pescoço e está firmemente
decidido a dar cabo da sua vida no próximo final de semana.

Oh, escárnio dos deuses! A aparência das pessoas nos engana, lamentavelmente.

Olhei o relógio, pois estava certo de que o segredo trágico deste rapaz
seria o último de minha experiência, quando de repente, vislumbrei alguém muito conhecido se aproximando do meu banco.

Cristo Jesus! Era eu mesmo vindo em minha direção.

Quais segredos eu revelaria, nos subterrâneos do meu ser, a mim mesmo? Que medo e angústia eu senti naquele momento!

Eis as palavras que o andarilho sussurrou em meus ouvidos:

– Eu te conheço desde sempre, estive contigo em todos os momentos de tua vida, nas tuas dores mais lancinantes e nas alegrias mais sutis de tua alma. Eu te sondo, meu querido filho, porque eu sou o anjo que desceu dos céus para visitar os teus sonhos.

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