Chama a atenção nesse conto de Kafka, publicado em fins do outono de 1920, a brevidade do relato e a extraordinária força simbólica contida no enredo.
Um abutre bica impiedosamente os pés de um homem. Uma pessoa que passava no local nota a cena e fica chocada. Pergunta ao homem como suporta aquilo e este lhe responde que já esgotou todas as forças para conter o pássaro. O passante promete então ajudá-lo e se prontifica a pegar uma espingarda em sua casa. Foi quando o abutre, que tudo escutava, voltou-se para o homem imperialmente, sem duvidar do que deveria fazer: olhou-o como a anunciar a morte iminente e o atingiu em cheio na boca. O homem morre, mas o abutre também sucumbe, mergulhado no sangue que envolveu a ambos.
A trama nos remete diretamente à metáfora e ao simbolismo literário tão caros a Kafka. Se pudéssemos usar aqui uma interpretação religiosa, veríamos o abutre como o perseguidor implacável que tudo observa, ferindo a carne humana recorrentemente. Como aquele que possui a capacidade divina de perscrutar os gestos terrenos ubiquamente.
Se acompanharmos a cena como uma fotografia de apreensão psicológica, de angústia e de terror, então poderíamos falar do abutre como uma metáfora deliberadamente urdida, como se fora ele próprio um inquiridor, sempre à espreita, detentor do veredito final, que controla o tempo e seus avatares e sabe a hora certa para perpetrar o ataque definitivo, sem hesitações que possam colocar em dúvida a certeza e a correção ética do voo em direção às chamas finais.
Notemos a atitude da vítima. O homem sabe perfeitamente que o abutre o acompanha, sabe do vaticínio imposto à condição humana: aconteça o que acontecer, não sobreviverás! E, apesar dos esforços inúteis para escapar das bicadas e fugir da angústia implacável, conhece perfeitamente o seu destino. Está fadado ao que lhe foi imposto pelas deusas parcas e o desalento de seus gestos o comprovam.
Entretanto, analisando a altivez das personagens em Kafka, para quem “o herói é igualmente aquele que tem a coragem de assumir a própria miséria”, percebemos por que o protagonista não tenta (ao contrário da sofreguidão de um Jó) enfrentar a situação opressiva, buscando forças dentro de si, ansiando por um cerne de racionalidade em que possa entrever as causas da perseguição.
Não há no conto menções a quaisquer momentos de interioridade, de introspecção, de busca de sentido. Afinal de contas, por que ele deveria experimentar a aflição de ser o objeto daquelas bicadas, do inexcedível voo que o consumiria? De onde veio o pássaro sinistro? De quais latitudes? Seria o abutre uma oblação oferecida pelos inimigos aqui da terra ou cultivada pela agricultura sagrada lá nos céus?
Danillo Nunes, analisando o consolo do protagonista em sucumbir junto ao sangue do abutre, cita a parte final do pequeno conto: “Ao cair de costas senti como uma libertação, que em meu sangue, enchendo todas as profundidades e inundando todas as margens, o abutre se afogava irremediavelmente”. Mas o homem nada pergunta e a conversa com o passante sugere antes, conhecimento do infortúnio do que esperança em acabar com o sofrimento.
No desfecho da história em que o sangue tudo redime e reconforta, temos a súmula do intrigante texto kafkiano: somente o homem sagrado, aquele desprovido de interesse próprio, que não faz perguntas em demasia, pode libertar-se da opressão que caracteriza nossa consciência de existir em meio a agourentos pássaros econômicos, sociais e políticos. Pensando bem, desde Adão e Eva estamos morrendo afogados junto ao sangue de nossos assassinos.