Jornal DR1

O olhar do desejo

Roberta entrou com o peito estufado e a cabeça erguida, como era o seu jeito de ser e sentou-se com delicadeza no pequeno sofá da sala de espera. A secretária do Dr. Osvaldo já havia dito que ele, infelizmente, se atrasaria para a consulta agendada e, portanto, a espera seria longa e monótona. Esta não era a primeira vez que o excelente dentista descumpriria os horários pré-marcados, mas a sua singular competência valia a fastidiosa demora. Roberta de pronto pegou o celular e foi percorrendo o feed do Instagram, sem qualquer pressa.

A sala vazia e o dia muito ensolarado traziam à jovem senhora de 42 anos, uma certa melancolia característica dos geminianos que precisam a todo momento de coisas novas e divertidas irrompendo em suas existências, como o sal extensamente espalhado num prato de comida italiana. Foi de supetão e ruidosamente que aquele homem barbudo, trajando um chiquérrimo terno azul-marinho, postou-se bem à sua frente, ocupando de maneira desleixada a poltrona espaçosa de couro macio.

Roberta esgueirou-se e fingiu que não percebera a presença do desconhecido, mas com o rabo do olho desviou a atenção do Instagram para examiná-lo sorrateiramente, como aliás deveria ser o comportamento discreto das mulheres bem casadas como ela. A barba era grisalha, longa e bem cuidada, os sapatos pretos e bonitos e a gravata era azul como o terno que, encimado por uma camisa branca impecavelmente cortada, dava àquele senhor um ar de sofisticação nobiliárquica.

Os gestos das mãos eram nervosos quando mexiam no telefone, mas bastou que ele tirasse os óculos escuros e vestisse os de grau, para perceber quase instintivamente que se tratava de um intelectual. A intelectualidade, ela a intuiu também por conta das pequenas linhas de expressão que circundavam os olhos negros expressivos e uma ruga, essa sim mais profunda, que lhe cortava a testa de maneira vertical. Devia, portanto, ter entre 40 e 50 anos e não chegava a ser magro, mas percebia-se que cuidava do corpo e talvez frequentasse a academia, como é hábito dos que se preocupam com a saúde física. 

O que dizer do perfume maravilhoso que tomou conta de todo o ambiente? Era amadeirado, forte e viril, um autêntico Narciso Rodrigues e ela o reconheceu prontamente. A última coisa que Roberta notou foi que o homem estava acompanhado por uma mochila transadíssima, meio transparente, de um azul cobalto espetacular. Será que ele só usava esta mochila quando vestia o terno azul-marinho?

Ela não pôde deixar de rir quando reparou que o forasteiro a olhava frontalmente, sem subterfúgios. Aferrou-se então ao feed, embaraçada e constatou que faltavam mais de 40 minutos para a consulta. O intelectual agora centrava toda sua atenção nas sandálias verdes de Roberta, fitando demoradamente os pés pequenos e bem feitos, harmonicamente combinando com o esmalte cor de renda. De vez em quando, os olhos dele subiam um pouco e contemplavam com languidez o vestido de verão e as pernas bronzeadas que se mostravam à luz do sol vinda da janela entreaberta.  “Nossa! Este deve ser um daqueles homens que têm fetiche por pés femininos”, pensava ela, rindo mais uma vez, mas permitindo-se desfrutar da inusitada e instigante cena.

O jeito dele era de fato fascinante, não demonstrando em momento algum qualquer tom invasivo ou desrespeitoso, muito pelo contrário, parecia mesmo um expert a saborear com ciência e perspicácia o objeto de desejo preferido. A energia no ar era de todo magnética e aquele intelectual misterioso não tirava os olhos dos pés de Roberta.

Ela devaneou e imaginou-se diante dele num lugar reservado, tirando as sandálias manhosamente, depois viriam os beijos delicados, as mordidinhas e as carícias habilidosas e sensuais. Haveria gemidos guturais e lancinantes, ela se conhecia perfeitamente e pedidos para que fosse chamada das coisas mais obscenas e vulgares. Era assim com o marido e seria assim com o desconhecido também!

Sentada na poltrona, Roberta sentia os pelos dos braços arrepiados, os seios intumescidos e mexia os dedos do pé quase inconscientemente, para “frisson” do grisalho de óculos. Quando Dr. Osvaldo abriu a porta do consultório e a chamou afetuosamente, foi como um transe interrompido de maneira abrupta. Ela então aprumou-se com diligência, levantou-se e guardou o celular na bolsa.

– Como tem passado o senhor? – perguntou séria.

À noite, exausta pelas mil atribuições do escritório de advocacia e depois de ter colocado os dois filhos pequenos para dormir, tomou um banho longo e prazeroso, foi para a cama junto ao marido que visitava o sono dos justos e, ao se lembrar das imagens intensamente vividas na sala de espera,  sentiu-se ainda molhada, mesmo depois do chuveiro e tocou-se em silêncio, como uma mulher madura fantasiando, pés e bocas envolvidos numa dança sem fim, flamenca, avermelhada como um batom percorrendo os lábios pulsantes da vida.

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