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O Rio sem lar!

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Por Sandro Barros

Foi no Rio de Janeiro que surgiu a favela mais antiga do Brasil: o Morro da Providência, no Centro. Embora já fosse habitada antes, a favela surgiu a partir de uma promessa que o jovem governo republicano fez aos soldados enviados à Guerra de Canudos: entregar-lhes residências caso saíssem vitoriosos. Ao retornarem ao Rio de Janeiro em 1907 e com a promessa não cumprida, os soldados se apropriaram de uma região do morro, que passou a ser chamado Morro da Favela, em referência a um dos morros próximos do local onde Canudos foi construída, no interior da Bahia.

Hoje, 112 anos depois, a questão da moradia segue sendo um dos principais problemas para a cidade que carrega o título de ‘Maravilhosa’. A população vê crescer em suas ruas o número de sem-tetos, além de uma quantidade também crescente de moradias inadequadas, o que reflete a própria crise econômica do país e da cidade. Pessoas e até famílias inteiras largadas ‘ao deus-dará’, sem condições dignas de sobrevivência. E esse problema tem nome: déficit habitacional.

Andando pelas ruas da cidade à noite, principalmente às do Centro, observa-se nitidamente que mais pessoas estão dormindo embaixo das marquises. O número exato de sem-tetos, no entanto, é uma incógnita. Há quem diga que são mais de 15 mil. A Secretaria Municipal de Assistência Social e Direitos Humanos (SMASDH), indagada a respeito pelo Diário do Rio, disse que “está finalizando os procedimentos necessários para fazer um censo da população em situação de rua no Rio de Janeiro”. Segundo SMASDH, esse levantamento será feito em parceria com o Instituto Pereira Passos, sem que haja ainda uma data definida, mas espera fazer essa contagem ainda este ano.



Maurício Lopes, morador de rua: sonho de alugar uma casa para morar

Um desses moradores de rua é o gaúcho Maurício Lopes, que está no Rio de Janeiro desde julho do ano passado. Falamos com ele em seu ‘atual endereço’, na Avenida Graça Aranha. “Eu arranjo um dinheirinho e compro uma caixa de paçoca para vender. Sonho em um dia poder conseguir um emprego e daí poder alugar uma casinha”. Com certeza, o sonho de Maurício é compartilhado por milhares de outras pessoas.

Outro lado do déficit habitacional são as moradias em condições extremamente precárias, como o Diário do Rio abordou na edição nº 37. São moradias construídas com materiais não duráveis, habitadas por uma quantidade excessiva de pessoas, não apropriadas para habitação ou localizadas em áreas de perigo de desmoronamento. Muitas dessas construções são irregulares e acabam tornando-se tragédias, como o triste episódio da comunidade do Muzema, na zona oeste, onde dois prédios desabaram em 12 de abril desse ano, deixando 24 mortos.

O saldo dessa mazela urbana é a constatação de que muitos sequer têm um teto que possam chamar de lar. Não é por menos que ocupações crescem também na cidade. Cabe aos governos federal, estadual e municipal viabilizarem políticas para reverter essa realidade, começando pelo uso de inúmeros imóveis atualmente desocupados.

O déficit habitacional no Rio

Carolina Rodrigues Freitas, graduada em História pela UFRJ e pós-graduada em Ciências Políticas pela Universidade Cândido Mendes

O desemprego em alta e a queda na renda familiar tem tornado o sonho da casa própria cada vez mais distante para uma grande parcela dos moradores do Rio de Janeiro. O déficit habitacional da capital, que já era elevado, chega hoje a 220.852 de moradias. Atualmente, o déficit habitacional ocorre, sobretudo, pela inadequação da moradia: habitações precárias, coabitação familiar, ônus excessivo de aluguel e adensamento excessivo de moradores.

Sob uma perspectiva histórica, a cidade como palco de transformações políticas e sociais tem na questão da saúde pública um dos motivos para intervenções que ensejaram os primeiros debates sobre déficit habitacional no município. A política de “bota-abaixo” de Pereira Passos, no início do século XX, que tinha como tarefa transformar a insalubre capital do governo em uma urbe que atendesse os padrões de modernidade e dinâmica dos novos tempos, buscou instituir os critérios básicos para uma “moradia higiênica”. Mas a demolição de moradias que não atendiam às demandas higienistas da época não solucionou o problema da habitação, ao contrário, impulsionou a precarização das habitações, naquele momento relegadas às periferias.

A partir dos anos de 1980, o remocionismo foi abolido do discurso oficial e o governo trouxe pra si a responsabilidade pela melhoria na habitação através da formulação de programas habitacionais. Dessa forma, o Programa Cada Família, Um Lote, do governo Leonel Brizola, foi um esforço no sentido de superação do déficit habitacional no estado fluminense.

De lá para cá, a formulação de políticas públicas comprometidas com o Estado de Bem-Estar Social tem se fortalecido e possibilitado um maior acesso à moradia, como o caso do Programa Minha Casa Minha Vida, por exemplo, que, segundo informações divulgadas pela Prefeitura do Rio em Janeiro, beneficiará cerca de cinco mil pessoas até o fim do ano.

No entanto, esses números mostram-se insuficientes para corrigirem o problema habitacional no Rio. O que se percebe é que as metas na área de habitação atendem minimamente às demandas e não correspondem ao tamanho do problema social.

A resposta para moradia é solidária
Sérgio Domingues, sociólogo e coordenador do Núcleo Piratininga de Comunicação

Em 2007, pela primeira vez, a população urbana ultrapassou a rural em nível mundial, de acordo com o Programa das Nações Unidas para Assentamentos Humanos. Historicamente, os moradores das cidades sempre tiveram melhores condições de vida. Ainda que, muitas vezes, de modo socialmente muito injusto.

Essa realidade tornou-se bem diferente desde que surgiu o capitalismo industrial. No século 19, Paris e Londres eram exemplos isolados de uma vida miserável e suja para as maiorias trabalhadoras. Hoje, são lugares modernos e limpos, mas aquele seu triste passado espalhou-se por muitas outras cidades pelo mundo.

No Brasil, não poderia ser diferente. E um dos maiores problemas urbanos do País é o enorme déficit habitacional. Em janeiro deste ano, levantamento feito pela Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias (Abrainc), em parceria com a Fundação Getúlio Vargas (FGV), mostrou que o déficit de moradias no País cresceu 7% desde 2007, tendo atingido 7,78 milhões de unidades habitacionais em 2017.

Por vários anos, o programa Minha Casa Minha Vida (MCMV) foi considerado a melhor resposta para esse grave problema social. Mas o problema é que o programa, criado em 2009, tem como principal parceiro o capital imobiliário. E nessa condição acabou servindo principalmente para resgatar parte do capital perdido pelas construtoras na bolha mundial de 2008.

Mas mesmo que a crise mundial não tivesse acontecido, foi um equívoco privilegiar as empreiteiras no lugar de iniciativas de economia solidária. Entre 2008 e 2011, o governo federal contratou 449 mil apartamentos junto ao capital privado, mas financiou apenas 30 mil unidades construídas por cooperativas. E quando o mercado é determinante, o imperativo é o lucro, não a qualidade. Ainda mais quando se trata de um público de baixa renda. Para entender melhor, vamos dar um exemplo citado por Guilherme Boulos, coordenador nacional do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), em entrevista publicada em 08/01/2015 no portal Outras Palavras.

Segundo Boulos, naquela época, uma construtora recebia uma verba do MCMV para construir 10 prédios a R$ 76 mil por unidade. Sendo que a área mínima a ser construída era de 39 m². Como a empreiteira podia construir onde quisesse, claro que preferia escolher as áreas mais desvalorizadas, com menos infraestrutura, utilizando o pior material. Além disso, se a empresa construísse 39 m² recebia R$ 76 mil. Mas essa mesma quantia seria paga se o imóvel tivesse 60 m². Não é preciso dizer qual área construída as empreiteiras entregavam.

Nada nessa lógica mudou, desde então. E deve piorar com o atual governo e sua fanática defesa de prioridade total para o capital.

Não há soluções simples para uma questão tão complexa como a falta de moradia digna para a maioria pobre das grandes cidades. Mas o MCMV já mostrou qual caminho não deve ser seguido. Ele não passa pelo mercado, mas pelas cooperativas populares. É verdade que iniciativas de economia solidária não estão isentas de apresentar irregularidades e cometer erros, mas sua razão de ser não é o lucro em detrimento do bem-estar coletivo.

E é justamente esta inversão de valores o maior problema da vida urbana contemporânea.

Fotos: Diário do Rio

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