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Os deuses que sabiam dançar

Foto: Renato Mangolin/Direitos reservados

A filosofia da potência (dynamis), desde Aristóteles e depois no século XVII com Espinosa, é aquela que recomenda para todos nós uma vida mais alegre, entusiasmada e corajosa, diante dos abismos inexoráveis que caracterizam e consomem a condição humana. Potência aqui entendida como fluxo inexaurível da vida que gera sempre mais e mais vida, até o paroxismo e a realização suprema do próprio desejo de autorrealização, num torvelinho crescente e amplo de conquistas espirituais e prazeres materiais (hedonê).

Vamos exemplificar o conceito clássico enraizado no coração da filosofia, com um prosaico dado da natureza: o sol (energia fundamental) incide sobre a grama, dando-lhe viço refulgente e fazendo-a expandir-se ilimitadamente, até ultrapassar todas as cercas, barreiras, prisões ou obstáculos que eventualmente impeçam-na de expandir-se até a consumação de suas possibilidades. Potência, portanto, significa estar permeável à força haurida desta “natura” para, assim, apropriarmo-nos de todas as oportunidades que a existência nos oferece, a fim de realizarmos em cada simples ato cotidiano, o melhor que o nosso talento e criatividade possam vir a ensejar.

Os filósofos gregos da Pólis davam o nome de Timós a este processo essencial de substancialidade anímica, que alimentava desde as almas solertes e corajosas dos guerreiros, até a curiosidade dos poetas que buscavam as paixões escondidas e subsumidas nas máscaras da representação social levadas a cabo nas grandes exibições teatrais. O grande filósofo alemão Nietzsche, séculos depois de Aristóteles e Espinosa, alterando parcialmente o conceito da alma valente grega e do agir no mundo espinosista, chamou-o elegantemente de vontade de poder.

Vamos novamente a um exemplo: tu és um humilde lavador de carros? Pois bem, teu Timós vai te transformar no melhor, no mais caprichoso e contente lavador de carros de toda a cidade. Mas o salário é pequeno e a profissão não desfruta de grande prestígio social? Pouco importa! Dinheiro e status são os bens mais voláteis da terra. Uma hora temos todos os tesouros do mundo, noutra tudo perdemos e somos os miseráveis amaldiçoados e abandonados pelos seres humanos (como bem ensinou o rei Salomão, no Eclesiastes). Mas a vontade de sermos o melhor naquilo que fazemos, de tudo laborar em cuidados de amor e coragem ardente, transforma-nos em autênticos e valorosos guerreiros salomônicos da luz. 

Se nos apropriarmos destas energias vitais, portanto, seremos alegres e fortes e viveremos dançando como se fôssemos bêbados nascidos das estrelas, gargalhando alto e bom som ao derredor da humanidade que insiste em permanecer apequenada, ressentida e iludida quanto aos bens preciosos da terra, porquanto dá de ombros a todas as lições filosóficas da dynamis. Quantos homens e mulheres passam existências inteiras padecendo humilhações e se deixando entristecer, em nome do dinheiro e do status social, com medo de serem livres e assumirem a grandeza sapiencial de suas vidas?

Permitam-se, caros leitores e leitoras, encontrar sublimidade e sentido na contemplação desvitimizada, mas cheia de tocantes memórias advindas das cicatrizes conquistadas depois das longas jornadas pelejadas. Porque “é preciso ter asas quando se ama o abismo”, como disse certa vez, o destemido Nietzsche que amava sobretudo os inimigos figadais que o confrontavam intelectualmente e os deuses longínquos que sabiam dançar.

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