Jornal DR1

Parte II – “Revertere ad locum tuum”?

Em vão.  Minhas unhas fincadas na pedra úmida quebraram-se e, deixando escapar um berro lancinante, caí em cima dos corpos aboletados.  Minha respiração dava-me a impressão de que o peito iria explodir, experimentava uma taquicardia que quase me levou ao desfalecimento, mas, aparentemente, meus ossos ainda estavam indenes, excetuando-se o resto do corpo, coberto de arranhões, de feridas, de cortes; mas o meu sangue era a última coisa que me importava…  Minha queda foi amparada por dezenas, centenas de corpos que não apresentavam sinais de mutilação.  Estavam todos mortos, disso eu já sabia, além de vestirem andrajos rasgados e sujos.  Não pude notar muitos detalhes naqueles infelizes, eram muitos, acho que não havia crianças entre eles; quando estava acomodado o suficiente em cima daquelas cabeças, braços, pernas desengonçadas e pestilentas como só pode convir a cadáveres, fui surpreendido por algo que roubaria a minha momentânea tranqüilidade: da parede do morro saíam esguichos fortíssimos de água, através de quatro canos muito grossos e compridos.  A força daquela corrente era descomunal e estava apontada para os defuntos empilhados, isto também quer dizer, para mim.  Percebi que os jatos, por sua potência, já começavam a arrastar alguns corpos, atirando-os para baixo.  Mas para baixo onde?  Ainda não havia observado o que lá me esperava, pois certamente seria carregado juntamente com alguns outros, justamente porque me agarrava em pés, mãos e cabelos que eram quase tão móveis quanto eu; só não o eram por estar um tanto encaixados, estava aí a minha desvantagem.

Segurei com energia a perna de um homem muito magro, a água já me machucava, além de me impedir de ver qualquer coisa e, debalde, o membro do homem, apenas, foi arrancado; e eu, emudecido pela experiência vesânica do sabor de muitas mortes, quando ainda vivo (o que talvez fosse uma desfaçatez) agarrava a um, a outro e, juntamente aos acompanhantes do meu pesar, fui rolando, ora por cima, ora entre, ora por baixo daqueles restos mortais indiferentes a minha neominia desesperada.

Cessei a queda, estupefato por ainda não ter explodido de uma ojeriza estéril e doentia, seviciado por um destino que julgava ser o mais cruel possível impingido a qualquer ser humano, perdido em meio àqueles que apontavam a ruína de preferir a morte como bendita felicidade no socorro aos desesperados; aprumei-me um instante e, atento, retesei todos os músculos, ainda seriam urgentes, pois começava a ouvir vozes.

Através de uma nesga que abri pelas carnes pútridas que me confundiam e envolviam, vi duas outras montanhas de corpos empilhados, exatamente como aquela aonde despenquei.  Sua altura era inacreditável, talvez ainda mais a sua arrumação:  pareciam de certa maneira socados, entalhados numa massa grotesca e monstruosa, uma visão que, por intermédio da imaginação, me seria impossível, pois era-me dado visivelmente a largura de tais blocos, porém não conseguia conferí-los a altura.

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