Há pouco mais de dois meses atrás, o congolês Moise Kabamgade, 24 anos, foi morto a pauladas por três homens no quiosque Tropicália, na Barra da Tijuca (RJ), onde trabalhava, após cobrar 200 reais do pagamento atrasado. Imigrante em situação ilegal, vivendo de subemprego e em condições de vulnerabilidade, Moise era mais um refugiado da guerra civil e da fome que aterram intermitentemente seu país no continente africano desde 1997. Ele buscava uma vida mais digna para si e sua família, assim como muitos angolanos e haitianos. Há rumores de que talvez Moise não estivesse cumprindo bem o seu trabalho ou que estivesse bêbado. Nenhuma dessas possibilidades, no entanto, justificam a crueldade do ato. O Brasil era para ele, como para muitos estrangeiros expatriados, sua segunda casa. No entanto, o queria seria acolhimento transformou-se em hospitalidade pervertida.
A hospitalidade aos estrangeiros é uma tradição que remonta da Grécia antiga, fazendo parte, portanto, de nossa tradição ocidental. Na Ilíada e na Odisseia de Homero, o conceito de hospitalidade tem origem em um vínculo ancestral e geracional que foi gradualmente se ampliando de forma tornar-se uma prática de acolhimento a viajantes e suplicantes, em situação de vulnerabilidade, em busca de alojamento, comida e paz. Rosa-Araceli Santiago Álvarez, em Faventia (2004), diz ser tal prática o embrião da regulamentação pública do estrangeiro, passando do âmbito estritamente familiar para o institucional. Academicismos `a parte, isso nos faz refletir sobre o estatuto do estrangeiro expatriado não somente no Brasil, mas também em outros países, muitos dos quais carregam a má reputação de alimentarem políticas racistas e xenofóbicas. Como os lestrigoes da Odisséia, gigantes antropófagos, os quais se tornaram sinônimo de incivilidade e de corrupção de valores, os brasileiros talvez também figurem junto a tal estigma, o que é lamentável e preocupante. Com uma comunidade de aproximadamente 4 mil congoleses somente no Rio de Janeiro, muitos dos quais refugiados, não podemos ignorar o que aconteceu com Moise Kabamgade. Tampouco, podemos permitir que um insidioso sentimento de superioridade étnica alimente nossas relações com outros povos. Não podemos permitir que o racismo estrutural, que hoje permeia nossa história, cultura e instituições sociais, avance ainda mais.
Triste pensar que, antes do ocorrido, muitos congoleses e outros refugiados estrangeiros consideravam o Brasil como sua segunda casa. Hoje, no entanto, eles precisam da assistência da Comissão de Direitos Humanos. Triste perceber que talvez estejamos partilhando de valores eurocêntricos e colonizadores completamente exógenos `as nossas raízes culturais e `as contribuições trazidas do continente africano na formação de nosso povo.