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Posto, logo existo

Era domingo, o sol ardia no céu azul límpido que cobria o Rio de Janeiro totalmente alheio ao fato de que o Verão já havia cedido lugar ao Outono. Sentada na areia, absorta, eu olhava aquela linha sem-igual de céu e mar. Eu poderia ficar ali horas e horas, à revelia dos vendedores ambulantes, das crianças jogando altinho, das idas e vindas dos banhistas, só sentindo o vento, observando o vaivém monótono das ondas. Costumaz, peguei o celular para registrar a cena e, posteriormente, postá-la nas redes sociais…. Aquele era um registro que eu não poderia deixar de dividir!

A cena citada acima é falsa, mas todos hão de convir que é tão comum que poderia dizer ser “baseada em fatos reais”.  Como uma marca de nossos tempos, a necessidade de postar tudo o que se vive e tudo que se faz manifesta-se quase como um sintoma. Onde quer que estejamos, frequentemente, nos deparamos com celulares a postos para registrar o momento: no restaurante, foto do prato; no barzinho, foto do drink; na academia, foto dos halteres. Verdadeiros diários públicos, os feeds de notícias das redes sociais são tomados pelas cenas cotidianas, que já não são vividas de forma privada. Se antes fazia sentido escrever sobre a rotina do dia a dia em diários íntimos, escondidos a sete chaves, hoje, com a fronteira do público e do privado implodida, viver e não postar é como se não tivesse vivido. Eis o silogismo do nosso tempo: “posto, logo existo”.

O que se percebe é que, na era das redes sociais, para sentirem-se pertencentes ao ethos contemporâneo, cada dia mais virtualizado, os sujeitos se afirmam a partir dos likes e followers. Logo, a garantia de engajamento nas redes depende intrinsicamente das postagens, o que, consequentemente, gera uma exposição demasiada e, na maioria das vezes, sem critério.  O que, por sua vez, incorre em uma exacerbação narcísica, que tem como resultado uma crescente desvalorização do altruísmo e a fragilização dos laços sociais reais.

Antes mesmo do advento das redes, já em 1968, em seu célebre “A Sociedade do Espetáculo”, Guy Debord já identificava, como consequência da sociedade de consumo capitalista, “a afirmação da vida social como simples aparência”. De certo, a produção de imagens e a valorização da dimensão visual da comunicação como instrumento de exercício do poder, apontadas por Debord naquela época, hoje, com a redes sociais, assumem lugar central, influenciando diretamente na atual compulsão por exposição no universo virtual.

Em suma, em uma sociedade em que para existir faz-se necessário provar que existe; onde a vivência encontra-se amalgamada à sua prova imagética, perde-se o tempo das experiências e de suas sensações, algo voltado pra si – movimento de introjeção, em benefício de uma insana necessidade de apenas registrar o momento, algo projetado ao outro. Não à toa somos uma sociedade cuja marca é a ansiedade. Incapazes de viver o momento, experiência do presente, preocupamo-nos em registrar para postar e esperar pela repercussão e, assim, condicionamos a nossa satisfação nesse “só depois”. Na dinâmica da vida é o que se posta, aquilo que realmente tem valor passa desapercebido pelas câmeras.  Afinal, vida de verdade (sem filtros) é aquela que acontece em off.

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