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Sangre, professor!

O professor deu um passo em falso e precipitou-se escada abaixo. Estendido no chão e ainda ofegante pela queda, foi avistado por alunos que saíam naquele horário das aulas matinais.

Sem que se saiba o motivo, o primeiro aluno vendo o professor ali caído, começou a chutá-lo furiosamente. Como num processo de violência mimética, os outros o acompanharam, desferindo no homem deitado socos, xingamentos e cusparadas. A algazarra aumentou e outros se aproximaram para participar do linchamento.

Ao longe na sala dos professores e sem ter conhecimento algum do acontecimento, mas vendo a aglomeração, outros professores comentavam, candidamente:

– Oh! Como é belo acompanhar a alegria da juventude! A energia magnífica que escorre destes corpos malhados, alimentando nossas esperanças num Brasil grandioso e humanitário!

Outros colegas de ofício, entretanto, tendo presenciado a ignomínia dos estudantes e usando da mais avançada tecnologia 4K, ao invés de intervir e ajudar o professor semiconsciente, preferiram filmar a cena para depois divulgá-la no grupos de WhatsApp.

O corpo no qual habitava o velho docente continuava embaixo no final da escada, sendo agredido ferozmente por mais e mais alunos que iam chegando de todas as partes do prédio.

Mas algo inusitado aconteceu naquele momento. Os próprios jovens começaram a se confrontar e agredir uns aos outros, com sofreguidão e habilidades aprendidas nas lutas de UFC.

A orgia de sangue e destempero estava inteiramente fora de controle e ninguém sabia exatamente por que estava participando da festa sacrificial. O único motivo para continuarem naquele lugar era a emoção tremenda de se sentirem membros, por assim dizer, de uma religião gnóstica com danças e cantos que, ao trespassarem a noite escura, satisfaziam a sede humana pela destruição.

O tempo passou rápido, o ódio generalizado se aplacou e foram todos embora, porque no dia seguinte haveria provas de ética e cidadania na faculdade.

Já era de madrugada, quando o servente da instituição ouviu grunhidos quase imperceptíveis vindos do final do corredor onde ficava a escada. Aproximou-se lentamente e encontrou a encanecida vítima toda ensanguentada se contorcendo em dores, mais parecendo um destes cães atropelados e abandonados em terreno baldio.

O faxineiro colocou os ouvidos perto da boca daquele miserável que, malgrado a debilidade, tentou balbuciar algo. Então, ele pode ouvir da boca ferida um murmúrio, uma oblação, quase um gemido desesperado e órfão:

– O sangue dos inocentes nasce do ódio que tudo contamina, que tudo envenena, que toca afogueadamente o coração dos homens, mas é através deste mesmo sangue martirizado que a vida é, misteriosamente, renovada em promessas de amor agora e para todo o sempre.

Depois de uma breve e sofrida pausa para tossir, continuou:

– Ajude-me a levantar, caro senhor. Amanhã mesmo preciso estar recuperado para ensinar o cristianismo aos meus alunos.

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