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Serra: Guerra do Iguape, o primeiro grande confronto entre europeus travado nas terras do Novo Mundo

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A Guerra de Iguape foi a primeira luta, entre europeus, travada em terras brasileiras. Portugueses e espanhois repetiam, no Novo Mundo, o que faziam na Europa e continuariam fazendo até 1644 na Batalha de Montijo. Acredita-se que tenha ocorrido entre 1534 e 1536, na região limite do tratado de Tordesilhas.

Portugal e Espanha foram os dois reinos europeus que , durante o século XV,  mais investiram nas grandes navegações e nas buscas pelo tão desejado caminho das índias, onde eram comercializadas as especiarias. Sendo assim, para evitar que os dois reinos entrassem em conflito, o Papa Alexandre VI interveio, propondo um acordo chamado a Bula Inter Coetera que estabelecia uma linha imaginária que dividia  as conquistas entre os dois reinos. Proposta que foi, imediatamente, recusada pelo rei de Portugal Dom João II que pedia sua reformulação. Então,  em 1494 após revisão e com o objetivo de pacificar as disputas entre os dois reinos,  foi assinado o Tratado de Tordesilhas que garantia,  através de uma linha imaginária,  a Portugal todas as terras descobertas e a descobrir que ficassem 370 léguas de Cabo Verde e a Espanha com as terras além da linha. Ele estabelecia os limites para Portugal e Espanha explorarem seus domínios no Atlântico e a partir dele desenvolverem sua expansão comercial marítima. Acordo esse que não foi integralmente cumprido por ambos os lados. Acredita-se que Portugal, por ocasião da assinatura do tratado, já tinha conhecimento da existência das novas terras do outro lado do Atlântico.

No ano de 1530, o grande navegador Martim Afonso de Sousa e sua esquadra, a mando do rei Dom João III, partem em direção ao Novo Mundo, com o objetivo de fundar a primeira vila portuguesa. Uma viagem de colonização de fato e  com a intenção de conter e manter afastados traficantes franceses de pau brasil, presentes na costa  brasileira. Acompanhava a comitiva de Martim Afonso, seu irmão Pero Lopes de Sousa que foi designado pelo rei de Portugal como responsável pela narrativa da expedição.

Em 1532, Martim Afonso  fundou a primeira vila portuguesa, em terras brasileiras, chamada de São Vicente. Durante este período da fundação da vila, corria boatos  de que mais ao sul, vivendo em meio aos índios carijós, um homem branco era considerado como senhor das terras  chamada de Cananéia.

Martim Afonso, juntamente com alguns de seus homens, partiram para Cananéia. Chegando lá se depararam  com  a  figura lendária e mística de nome Cosme Fernandes,  conhecido como “Bacharel de Cananéia”, que dizia estar vivendo na região por mais de 30 anos. Acredita-se que ele tenha sido abandonado, na região, pela expedição de Gonçalo Coelho em 1502, como degredado e proibido de retornar a Portugal devido à gravidade dos seus crimes. Como Bacharel estava no Novo Mundo a bastante tempo como degredado, o tornava um candidato perfeito para absolvição de seu degredo, podendo voltar ao seu Portugal e ser absolvido de seus crimes, além de receber uma quantia razoável em dinheiro em troca de informações sobre o Novo Mundo. Porém, Bacharel era considerado como rei desse lado do trópico, o senhor da floresta. Possuía várias mulheres, comandava vários guerreiros e aliados. Vivia bem e servia como entreposto para diversos navegadores, logo,  tal proposta não lhe era conveniente, diante da vida que levava na região.

Por ocasião do encontro com Bacharel,  Martin Afonso e seus homens fizeram contato com Francisco de Chaves, desertor de uma expedição espanhola, que dizia conhecer o caminho  do Reino dos Quatro Cantos ou Tawantinsuyu ( maior império Inca da América pré-colombiana, cuja existência era cercada  de mistérios e lendas). Mas para isso precisaria de homens e munições para alcançá-lo  e em troca traria muitos escravos, portando, cada um deles, um saco de ouro e de prata. Martim Afonso, então, ávido por riqueza, ordenou a Pero Lobo, seu capitão e alguns besteiros e arcabuzeiros que seguissem com Francisco Chaves para o tal reino, o qual iriam saquear.

Em fevereiro de 1533, Pero Lopes volta ao rio da Prata, na esperança de obter notícias da expedição e de Pero Lobo. Isto porque, vários boatos circulavam a respeito da expedição de Francisco Chaves e de Pero Lobo. Após muito esperar e sem notícias, Martim Afonso  nomeia  Pero Góes para assumir o seu posto e volta a Portugal, juntamente com seu irmão, por conta de vários negócios pendentes no seu país.

No decorrer de sua partida, Martim Afonso  e sua comitiva,  enquanto seguiam para atravessar o Rio Iguaçu, próximo a foz da Barra do Icapara, entraram  em território dos índios paiaguás, onde sofreram uma emboscada. O Capitão e muitos homens morreram e os que conseguiram sobreviver, recuaram para a outra margem do rio. Lá chegando, os portugueses foram acolhidos pelos índios que demonstraram cordialidade e lhe cederam canoas e  os  conduziram por uma passagem segura até o rio. Porém, quando os barcos furados começaram afundar no meio do rio, muitos portugueses morreram afogados, muitas armas e equipamentos se perderam e aqueles  que conseguiram nadar, foram mortos por flechas indígenas.

Essa emboscada foi, certamente, armada e arquitetada pelo próprio Bacharel, que acreditava na descoberta da  trilha  que ia de Cananéia até os Andes e no fato de que tal descoberta traria uma grande importância para a região. Com isso, Martim Afonso que tinha poder, quase absoluto, sobre todos aqueles que não fossem fidalgos, colocaria ele, que era degredado, em sua mira , já que possuía o  poder para  confiscar a sua sesmaria e todos os seus bens. Razão pela qual, a culpa da aparente traição, ter caído sobre ele.

Um emissário do rei de Portugal fora mandado para Cananéia, levando a sentença,  de que a partir daquela data, Bacharel cumpriria seu degredo em São Vicente, não mais em Cananéia, sob a autoridade de Pero de Goes. Porém, um castelhano chamado Ruy Gracias de Moschera, que dizia estar sob as ordens de Carlos V da Espanha, protestou o que ele classificou de absurdo de Portugal mandar na jurisdição que não pertencia a eles e muito mais mandar  prender alguma pessoa em jurisdição espanhola. Claro que tudo isto foi uma farsa para enganar o emissário do rei. Na verdade, Moschera não passava de um desertor, apesar de ter ficado a dúvida a respeito do território estar sobre a jurisdição portuguesa ou espanhola devido  ao traçado da linha do Tratado de Tordesilhas, que dava margem ao questionamento.

O fato, deixou o comissário do rei receoso e temeroso de causar um problema entre as duas coroas. Concedeu, então, na dúvida, um mês a Bacharel para se apresentar em São Vicente em obediência a Coroa Portuguesa e sobre a pena de morte e confisco de bens.

Bacharel, diante da situação, ao invés de se entregar para satisfazer a vontade dos recém chegados portugueses, começou a  planejar sua defesa. Sabendo do prazo que tinha, ordenou a seus homens que  construíssem uma trincheira  na região do Icapara, próximo a Iguape, onde Moschera vivia com vários outros desertores castelhanos e amigos de Bacharel.

Durante a construção da trincheira, chega à Cananéia um navio de traficantes franceses de pau brasil pedindo suprimentos e algumas mulheres. Aproveitando-se  da negociação com os franceses, Bacharel ordena um dos seus homens que reunissem outros 200 homens e ao anoitecer tomaram e saquearam o navio francês. O navio foi tomado pelos homens de Bacharel à custa da morte da maioria dos tripulantes e sequestro de alguns poucos que se entregaram. Agora, para Bacharel, era só esperar pelos portugueses, pois tinha muitos armamentos, canhões e munição, saqueados do navio.

Passado  o prazo  que o mesmo deveria se entregar, Pero de Góes reúne seus homens e parte em direção a Cananéia, onde é informado, pelos índios, que Bacharel e seus homens estavam escondidos em Iguape. Sendo assim Pero de Góes e seus soldados seguem para Iguape. Porém, quando os portugueses chegaram na Barra e se aproximaram do mar pequeno, foram surpreendidos por uma trincheira com quatro peças de artilharia, roubadas do navio francês. Foi um ataque repentino das forças de Moschera e do Bacharel, conhecido como a Guerra de Iguape, que forçou os portugueses a se refugiarem num mangue mais próximo, onde estavam os espanhóis rebeldes, de prontidão. Nesta guerra, muitos portugueses foram mortos e o próprio Pero de Góes levou um tiro de arcabuz (arma de fogo portátil), no olho.

Bacharel, entusiasmado com a vitória, percebeu que sem aqueles homens feridos no conflito e que estavam fugindo, a tão preciosa São Vicente estaria desprotegida dos índios e do contingente de foras da lei. Então, ele juntou seus homens e velejou com o navio francês que fora sequestrado  até São Vicente. Assim que chegou, sitiou a cidade, queimou casas, destruíu o Pelourinho, onde sua cabeça estava a prêmio e invadiu o cartório que continha todos os registros das sesmarias, levando consigo o livro do Tombo (fonte oficial de informação sobre a região e sobre os seus fundadores) para que não houvessem evidências de nada que tivesse ocorrido na região. Temendo uma retaliação portuguesa, abandonaram Iguape e fugiram  para o Sul.

Moschera e seus comparsas fugiram para Porto dos Patos em Santa Catarina e, logo em seguida, para Buenos Aires, na Argentina.  Bacharel, por sua vez, retorna   ao seu pequeno domínio, em Cananéia, em meio do nada, desafiando a Coroa Portuguesa.

Bacharel, disposto a se vingar dos portugueses, chegou a trocar cartas e prestar auxílio à Imperatriz Dona Isabel de Castela, oferecendo-se para dirigir uma possível ocupação espanhola na região. Fato esse que não se concretiza e da mesma forma misteriosa em que ele surge na história, ele também desaparece. Suas referências, a partir de 1537, desaparecem. Acredita-se que tenha sido morto pelos índios carijós, seus aliados.

Fato é que Bacharel, o senhor do fim do mundo, venceu os portugueses, atrasando a colonização do Sul do Brasil em dez anos, entrando para a história como o vagabundo degredado que lutou até o fim, com os portugueses, pelas terras que o considerava serem suas.

Vale ressaltar que o Tratado de Tordesilhas foi extinto quando a Espanha anexou Portugal a sua monarquia e instituindo, com isso, a União Ibérica (1580-1640).