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Tráfico no Rio intensifica recrutamento de jovens pelas redes sociais

Foto: Reprodução

O tráfico no Rio de Janeiro tem utilizado as redes sociais como vitrine para atrair adolescentes e ampliar sua influência para além das comunidades. Essa dinâmica ficou evidente na trajetória de X., de 14 anos, que nunca havia frequentado a Penha, na Zona Norte, até se aproximar virtualmente de perfis ligados à Tropa do Urso — grupo associado ao traficante Edgar Alves de Andrade, o Doca, uma das lideranças do Comando Vermelho (CV). A partir de curtidas em fotos de criminosos armados, o jovem passou a circular pelos complexos da Penha e do Alemão, chegando a ser buscado em casa por homens em motos, segundo familiares.

De acordo com reportagem do portal EXTRA, o adolescente foi um dos 117 suspeitos mortos na megaoperação que mobilizou forças policiais na região. Policiais concluíram, com base em postagens, que X. e outras oito pessoas mortas tinham ligação com o CV. Conteúdos exibindo fuzis, drogas e ameaças se multiplicam nas plataformas, fortalecendo uma cultura visual que se espalha rapidamente.

Moradores registraram o dia seguinte à operação, quando dezenas de corpos foram levados para uma praça no Complexo da Penha. As imagens, feitas por celulares, circularam intensamente, alimentando debates sobre a atuação das facções e a reação da população.

Com milhares de seguidores, perfis ligados ao crime se transformaram em uma nova janela de exposição. Para o subsecretário de Inteligência da Secretaria de Segurança, delegado Pablo Sartori, o CV criou uma estratégia coordenada de comunicação capaz de seduzir jovens de fora das áreas dominadas. Segundo ele, esse movimento ganhou força nos últimos cinco anos.

— Organizações criminosas como o Comando Vermelho buscam projetar, para além de seus territórios, uma imagem positiva de liberdade e de vida de luxo. Criminosos posam em motos e carros caros roubados, vendendo a falsa ideia de que o tráfico é a única forma de mudar de vida. E, quando morrem, recebem homenagens como “saudades eternas”, reforçando a narrativa de que não foram esquecidos e de que o tráfico se importa com seus mortos. É um marketing direcionado à sociedade — afirmou Sartori.

O delegado explica que equipes das subsecretarias de Inteligência das polícias Civil e Militar monitoram contas usadas por facções — sobretudo pelo CV, conhecido por se exibir mais nas redes. Quando encontram publicações que fazem apologia ao crime, relatórios são encaminhados para a instauração de inquéritos.

Nas redes, adolescentes também reforçam essa estética criminosa usando a alcunha “bebel”, compartilhando fotos com joias, celulares roubados e referências aos artigos 155 e 157 do Código Penal. Em uma investigação recente, policiais prenderam dois adultos e um menor que furtavam celulares na Barra da Tijuca e publicavam vídeos se vangloriando dos crimes. Um deles, Kevyn Natham Domingos, de 18 anos, admitiu que mantinha perfis para “conseguir mais seguidores”. Ele e os comparsas eram conhecidos como o “trio do ódio”, segundo as postagens analisadas. Kevyn foi condenado a um ano de prisão por formação de quadrilha.

O GLOBO identificou perfis no Instagram e no TikTok que exibem o cotidiano de criminosos. Em uma conta com 26,5 mil seguidores, vídeos chegam a centenas de milhares de visualizações, incluindo imagens de homens armados. Para evitar punições das plataformas, muitos borram armas ou cobrem fuzis com figurinhas infantis. Hashtags como “tropa do urso” também aparecem com frequência, remetendo ao traficante Doca.

As postagens incluem provocações e incentivos à morte de rivais. Em uma delas, três homens armados posam ao lado de emojis que fazem referência a lideranças do Terceiro Comando Puro (TCP), como Lacoste e Coelhão.

Com mais de três décadas de atuação com menores infratores, o procurador de Justiça Márcio Mothé afirma que há pessoas dedicadas exclusivamente a recrutar jovens pelas plataformas digitais.

— O início na vida do crime é na adolescência, numa escalada. A ideia é de glamour: mulheres, dinheiro, poder. Vimos que, entre os mortos na megaoperação, a maioria tinha passagens pela polícia. Isso mostra como a Justiça falha, pois perdeu a oportunidade de ressocializá-los. Para se chegar à Justiça, é porque falhou um monte de gente — declarou.

O analista de segurança e defesa Alessandro Visacro, autor de “A guerra na era da informação”, destaca que as facções usam as redes para criar ideologias e difundir sua cultura criminal.

— Qualquer jovem quer ter mais seguidores nas redes. E o crime tem se aproveitado desse espaço cibernético. Há quem use para aplicar golpes, mas outros o exploram com base na cultura criminal — afirmou.

A família de X. tentou intervir antes da tragédia. O adolescente passou a morar com o pai, auxiliar de serviços gerais, após queixas da mãe sobre seu comportamento e faltas na escola. A mudança, porém, não impediu que ele continuasse frequentando ambientes ligados ao tráfico.

— Ele sempre foi tranquilo. Mas, há um mês, quando estava no banho, deixou o WhatsApp aberto. Tomei um susto. Tinha uma foto dele segurando um fuzil. Dei conselho, levei ele para ouvir os pastores da igreja. Sentei com ele e falei: meu filho, você tem que entender que esse caminho é caminho de prisão. Prisão é você estar numa cadeia, algemado. Teu pai anda onde quiser. A melhor coisa é ter liberdade — relatou o pai.

X. saiu de casa no dia 24 sem avisar e manteve contato com o pai até o dia 28, data da operação. Depois disso, não respondeu às chamadas.

— Sabia que algo tinha acontecido. Vi fotos nas redes sociais dos mortos na Penha. Reconheci o corpo dele pela bermuda e pelo casaco pretos que usava. Eles acham que aquele mundo é o verdadeiro. Meu filho escolheu esse caminho — disse o pai.

A mãe de um traficante de 18 anos, preso no ano passado e condenado a 12 anos, relata que vive tentando alertar outras famílias sobre o risco das redes sociais.

— Não basta largá-los com o celular ou não olhar o que estão assistindo nas redes — afirmou.

As plataformas dizem que removem contas que estimulam crimes. O TikTok informou ter retirado os perfis encaminhados pela reportagem, alegando violação das Diretrizes da Comunidade. A Meta declarou que suas políticas não permitem a promoção de atividades criminosas ou a glorificação de organizações perigosas, e que conteúdos desse tipo são removidos quando identificados. A empresa afirmou ainda que aprimora constantemente seus mecanismos de detecção e incentiva usuários a denunciar publicações.