Imagens restauradas pelo Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro lançam nova luz sobre um dos episódios mais simbólicos e controversos da história urbana da capital fluminense: a destruição do Morro do Castelo, considerado o berço do Rio de Janeiro.
Entre o fim do século XIX e as primeiras décadas do século XX, a colina onde surgiram as primeiras igrejas, escolas e prédios administrativos da cidade foi desmontada como parte de um amplo projeto de modernização do Centro. O processo resultou na remoção de centenas de famílias, na demolição de cerca de 400 construções coloniais e em uma transformação definitiva da paisagem urbana.
As imagens, exibidas em reportagem especial do RJ2, mostram escavadeiras, vagões, jatos d’água e operários atuando no que foi um dos maiores desmontes urbanos já realizados no Brasil. A operação reuniu interesses políticos, econômicos e simbólicos em nome do chamado progresso.
O material histórico revela ainda que, antes da decisão final, chegou a ser cogitada a demolição do Pão de Açúcar como alternativa para a modernização do Centro, ideia que acabou descartada.
Importância histórica
O Morro do Castelo ocupava uma área de aproximadamente 184 mil metros quadrados — o equivalente a 25 campos de futebol — e atingia 63 metros de altura. Do alto, era possível observar toda a Baía de Guanabara. Foi ali que se estabeleceram as primeiras estruturas da cidade, como igrejas, casas, escolas, a Câmara e a cadeia.
Segundo o historiador Antonio Edmilson Martins Rodrigues, professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), a localização estratégica explica a centralidade do morro na formação da cidade.
“O Morro do Castelo segue a tradição portuguesa de instalar fortificações nos pontos mais altos das cidades, garantindo defesa e controle do território”, explica.
Durante séculos, a região foi ocupada por membros da elite e por instituições religiosas, concentrando poder político, militar e religioso.
Processo de decadência
A partir da segunda metade do século XIX, o morro passou a ser associado a problemas sanitários e epidemias. A dificuldade de circulação de ar no Centro da cidade fez com que a área fosse responsabilizada por questões de saúde pública.
De acordo com a cineasta Sinai Sganzerla, diretora do documentário O Desmonte do Monte, esse discurso contribuiu para o esvaziamento da região.
“O morro passa a ser visto como um obstáculo à modernização e à higiene urbana. Com isso, moradores mais ricos se retiram, e a área passa a ser ocupada majoritariamente por pessoas pobres, muitas delas negras e imigrantes”, afirma.
O desmonte
As primeiras intervenções ocorreram em 1905, durante a reforma urbana do prefeito Pereira Passos, com a abertura da Avenida Central, atual Avenida Rio Branco. A destruição total, no entanto, foi concluída a partir de 1920, durante a gestão do prefeito Carlos Sampaio, às vésperas da Exposição Internacional do Centenário da Independência, realizada em 1922.
Na época, o morro foi oficialmente classificado como um “dente cariado” — metáfora usada para justificar sua eliminação em uma cidade que buscava se apresentar como moderna e alinhada aos padrões europeus.
A terra retirada foi utilizada em aterros que ampliaram áreas da cidade. No entorno do antigo morro surgiram construções emblemáticas, como o Museu Histórico Nacional, a sede da Academia Brasileira de Letras e grandes hotéis que marcaram o novo desenho urbano.
Exclusão social e apagamento histórico
Pesquisadores destacam que o discurso da modernização ocultou um processo de exclusão social. Não houve políticas de reassentamento para os moradores removidos, que desapareceram dos registros oficiais.
“O projeto privilegiou determinados interesses e apagou parte significativa da memória urbana e social da cidade”, afirma Edmilson.
Além disso, relatos históricos mencionam a descoberta de túneis, objetos religiosos, ossos e até instrumentos de tortura durante as escavações, alimentando lendas sobre tesouros enterrados no local.
Memória preservada
Antes da conclusão do desmonte, cerca de 10 mil pessoas participaram da última missa celebrada na Igreja de São Sebastião, no alto do morro. Após a cerimônia, símbolos da fundação da cidade — como a imagem do padroeiro, a pedra fundamental e as cinzas de Estácio de Sá — foram levados em cortejo até a Igreja dos Capuchinhos, na Tijuca.
Hoje, restam apenas fragmentos físicos do Morro do Castelo, como um trecho da Ladeira da Misericórdia, além de registros fotográficos e audiovisuais preservados em arquivos públicos.
Para os historiadores, apesar de invisível, o Morro do Castelo permanece presente na memória e no traçado urbano do Rio de Janeiro.
“Ele continua ali, como um lugar de memória, perceptível nas inclinações das ruas e na organização do Centro da cidade”, conclui Edmilson.





