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Serra: A revolta dos Malês

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Conhecer a história dos povos africanos é entender, ainda melhor, a origem do nosso povo. Sabemos que os negros africanos obrigados a viverem como escravos tiveram importante papel na formação de nossa cultura. Entre os séculos XVI E XIX, alguns milhões de africanos foram trazidos para o Brasil. Os navios negreiros que aqui chegaram, traziam muito mais do que braços para o trabalho. Em seus porões viajavam, também, culturas, idiomas e religiões.

A África de muitos povos e contrastes é um continente de mais de mil línguas e dialetos diferentes, costumes e hábitos diversificados. Foi, exatamente, de sua parte atlântica que vai do Senegal a Angola que vieram a maioria dos africanos escravizados para o Brasil, em parte por ser a área mais populosa do continente e por isso sofreu com mais intensidade  o impacto do comércio internacional de escravos.

Musorongo, Mbanda, Bariba, Ioruba, Ovimbundo, Hauça, Nalu e Bornos são palavras que podem, à primeira vista, nos soar estranhas e de pouca importância. Mas desde o século XVI elas estão estritamente ligadas à história do Brasil e, de algum modo, à nossa vida. Cada um desses nomes faz referência a povos africanos que foram trazidos à força para o Brasil colônia  e império. Cada povo com língua e costumes diferentes. Povos que durante o período da escravidão deixaram forçosamente o seu continente para fincarem raízes em solo brasileiro.

A escravidão foi uma instituição que existiu no Brasil por mais de 300 anos. Indígenas, africanos e seus descendentes foram escravizados ao longo desse período, escrevendo uma história acompanhada de fugas e de resistências.

A resistência contra a escravidão manifestou-se de diversas maneiras e locais como o Quilombo de Palmares transformado em um dos grandes símbolos de luta. As revoltas desses escravizados foram formas comuns de resistência contra um regime e que aconteceram em todo o país.  Quanto mais escravos presentes em uma região, maiores eram as chances de que revoltas acontecessem, e a Bahia do começo do século XIX foi palco para muitas delas.

A Bahia ficou marcada por um grande número de revoltas de escravos e foi, também, um dos estados que mais recebeu africanos escravizados pelo tráfico negreiro. Dentre os vários grupos destacaram-se os grupos nagôs (Iorubas) e os Hauças ou hussas que foram os grandes responsáveis pela maioria das revoltas. Eram povos que tinham histórico de envolvimento  com guerras. Sendo assim, a Bahia da primeira metade do século XIX abrigou cerca de 30 revoltas, das quais mais da metade aconteceram na década de 1820. Destacando-se a Revolta de 1807, que foi uma das primeiras agitações desse período, onde os revoltosos planejavam atacar as  igrejas, destruir suas imagens na tentativa de instalarem uma autoridade muçulmana  no poder, em Salvador e em outros locais. Foi descoberta e dissolvida,  antes mesmo de ter sido iniciada.

Inúmeras outras revoltas aconteceram nos anos seguintes, mas na história da resistência e das revoltas escravas a que ,realmente, ficou marcada  foi a Revolta dos Malês.

Os malês (palavra oriunda do imalê, expressão que no idioma Ioruba significa muçulmano) eram estudiosos, bons em matemática, bilíngues e alfabetizados em árabe com nível superior, muita das vezes, a dos seus senhores e dos brasileiros da época. Razão pela qual eram utilizados como escravos de ganho (trabalhavam em diversas funções remuneradas, tais como: transporte de cargas e de pessoas, vendedores, ambulantes, barbeiros, alfaiates, sapateiros, ferreiros, pedreiros, curandeiros, prostitutas, negras de tabuleiros e outras atividades cujo dinheiro obtido nesses serviços era repassado em sua maioria para os seus senhores). Fato que lhes concedia maior mobilidade para circular pela cidade e se comunicar com outros escravizados. Eles foram a prova de grande capacidade de mobilização, com estratégia e ousadia conseguiram incitar os outros escravizados a participarem do levante. Uma dessas estratégias era a distribuição de panfletos escritos em árabe, divulgando o planejamento da revolta, sem que descobrissem as reais intenções do grupo.

Foi nesse cenário que se deu a maior e mais significativa revolta de escravizados de nossa história. Salvador, que na época, tinha uma população de 65 mil habitantes, dos quais 40% era de africanos, em sua maioria nagô, hussas, tapas (ou nupes), entre outros.

A Revolta dos Malês liderada por Ahuna, Pacífico Licutan, Sule ou Nicobé, Darsalu ou Damalu, Gustar, Manoel Calafete (liberto) Luis Samin e Eslebão do Carmo, Heloisa Mahin  ( mãe de Luis Gama – advogado abolicionista) e Dandará estava marcada para o final do Ramadã (mês sagrado no islamismo). “O dia Marcado era o de Layla AL-Qadr (Noite da Gloria) quando a religião islâmica celebra a revelação do Alcorão ao Profeta Mohammad (Maomé) no Monte Hira, em Meca” pelo Anjo Gabriel (Jibril). Porém o levante eclodiu, abruptamente, na madrugada do 25 de janeiro de 1835 após a descoberta, por seus líderes, que teriam sido traídos e a revolta denunciada. Nesta madrugada os revoltosos trajando abadás brancos como os trajes típicos dos árabes, com turbantes na cabeça e portanto amuletos no pescoço com trechos do Alcorão iniciaram os combates que se espalharam por diversas ruas da cidade e que se estenderam por horas . Antes de serem derrotados os malês lutaram bravamente contra as forças do governo da província da Bahia, travaram batalhas na Praça Tomé de Sousa (ao lado onde hoje é o elevador Lacerda),  na Praça Castro Alves, no Mosteiro das Mercês, no Largo da Lapa, no Terreiro de Jesus, no Largo do Pelourinho na Baixa do Sapateiro, em outras localidades, até  chegarem na  localidade de Água de Meninos (área portuária), quando encurralados os insurgentes, tentavam fugir para o recôncavo. Neste local ocorreu a última e a mais sangrenta das batalhas. Foi o momento mais dramático do levante. Alguns feridos se esconderam nos matos, outros fugiram para o mar onde foram fuzilados e ou morreram afogados. Uma derrota que  culminou no fracasso ( pois não conseguiram libertar Pacífico Licutan da cadeia) e com o fim da Revolta dos Malês.

As punições foram severas contra os envolvidos e alcançaram até os libertos. Os punidos sofreram com a prisão, o açoite (como foi o caso de Pacífico Licutan condenado a mil açoites), a deportação e a execução, por fuzilamento, para Jorge da Cruz Barbosa (Ajahi), Pedro, Gonçalo e Joaquim. Logo após  a Revolta dos Malês, a repressão e as perseguições policiais contra a população escrava  e libertos, em Salvador, tornou-se bastante rígida. Um decreto assinado, no mesmo ano, pelo chefe de polícia Gonçalves Martins autorizava qualquer cidadão dar voz de prisão a escravos muçulmanos ou não que estivessem reunidos em número de 4 ou mais. Reunir pessoas em casa passou a ser estritamente proibido. O decreto determinava, também, que todos os africanos e seus descendentes suspeitos ou envolvidos em revoltas e motins seriam deportados.