Jornal DR1

A morcego

Quebra a janela num estrépito! E como quem se recolhe ao próprio lar, desfaz-se dos fragmentos purpúreos do vitral multicolor.

Alça voo! E, planando com graça milenar, vulto negro, executa o movimento que a mantém suspensa, dançando, quase cega em meio aos ornamentos sagrados; pousa e contempla as nuvens do ignoto.

Parece descansar na solidão, como se alcançasse, com a sua paz e o seu sono na dor, a própria morte.  Os pequenos corações ainda compassavam, marcando o ritmo da vontade… e mais um impulso, atirando-se de uma viga de mármore, em direção a bancos de madeira talhada enfileirados. Passando um a um, a escolher como deveria ser o toque.

E abre as asas… espicha-se, sacudindo os resquícios da chuva que permeavam o peito inchado de fome e de leite.

Os olhos entreabertos e a face indiferente contemplam o sítio estático, soturno, recheado de diminutas e toscas lâmpadas azuis fluorescentes.

Ao alto! Vigorosamente, voando, voando… semeando sutil balé na atmosfera beijada pela brisa que rasgava a luz solar. Pairando e circundando um grande castiçal laqueado, dependura-se. Agora, nova perspectiva se afigurara.

Pequenos espasmos faziam tremer o ventre, como soluços; atirando-se com potente furor ao chão, quase com ele colidindo. Com fortes batidas de asas, impediu a queda e aprumou-se; provou do pão que se oferecia logo à frente, vorazmente, chegando a morder-se. Autofagia.

Haveria de concluir a necessidade imediata de expansão, dirigindo, com leveza inigualável, os corpos, até atingirem os braços unidos e estendidos d’uma estátua. Lá recostou-se e, como reza a maravilhosa lei da perpetuação da vida, deu à luz a um pequeno novelo de carne viscoso e frágil.

A asa que voa é a que abriga, a que protege e resguarda. E neste gesto vai o amor sem ditames, a gratuidade.

Seguindo, a fêmea transpassa a janela pelo mesmo lugar pelo qual entrou. A criaturinha, desabrochando, permanece só na madeira fria.

O Sol, como ele é, sem utilidade na sua beleza e inexorabilidade, repele o morcego para dentro do recinto já visitado; seguir para a madeira, para a carne da divisão, para o cheiro do próprio sangue. Mas o pequeno animal não mais se movia. Havia sido atacado, seus restos não passavam de uma forma nodosa vermelha e fétida.

Teria alimento por mais algum tempo, mas decidiu sumir, voar, cortar o vento. Juntou-se a um bando e permaneceu na escuridão tépida de uma caverna, escondida, latente.

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