Jornal DR1

Ars Gratia Artis: A voz

Dedicado a Lisa Gilles

Karen, já aos seus dezesseis anos, modula sua voz… e, assim, volta a ser criança por alguns momentos… principalmente para a mãe – e talvez impressione até a si mesma… mas não a todos; muitos percebem aquela voz infantil , proferida por uma jovem mulher, quase como uma patologia… no que me enquadro, por vezes… mas há algo mais.

No vocalizar infantilidade, é criada uma redoma, no tempo e no espaço. Principalmente entre ela e sua mãe. Karen as leva para um tempo e um ‘lugar’ que nunca existiu. Um lugar onde ela tinha 5 anos, ou menos, e foi feliz. E teve um pai. E teve um lar. E teve constância, uma vez que sua vidinha foi marcada por muitas mudanças de casa, por muitas reviravoltas, decorrentes das tentativas de sua mãe de ser feliz e de sobreviver – seja em seus relacionamentos amorosos, seja em suas atividades profissionais, o que trouxe, além de muitos aprendizados, muito sofrimento, decepção e lições duras – o egoísmo que esta humanidade reserva – lições duras e amargas, que uniram ainda mais essas duas ‘meninas’, essas amigas, mãe e filha, porque foram sempre elas, foram sempre elas e o mundo, e essa voz arremessa as duas pra esse lugar, esse lugar que não existiu mas que elas queriam tanto que existisse… e que agora, de certa forma, como a flor de Lotus, parece brotar num canto insuspeito… ela preserva, como numa caixinha, reproduzindo essa voz, essa caixinha de música de uma infância que não mais existe, essa voz que é quase triste… diria até que é triste, sinto isso nela, talvez a causa do meu incômodo… essa voz que diz frases que acabam sempre com ‘mamãe’… e que quase sempre é usada na cozinha, quando as duas estão fisicamente próximas… quando estão sozinhas… é peculiar isto ocorrer amiúde no local onde nos alimentamos, no locus onde nosso alimento é preparado e servido… onde nos fortalecemos. A voz as aproxima e alimenta. E sou um estranho nesta dança.  Mas neste processo me vejo, também, uma criança. Apesar de não ser convidado a entrar em tal redoma, eu entro. Logo após entrar, a voz, entristecida, dirige-se a mim e me saúda. Eu não sou ‘o pai’. Eu sou mais. Eu sou algo mágico. Eu estou naquele lugar que não existe. Naquele tempo que nunca houve e é agora. Nós somos. Nós estamos. E neste ser-e-não-ser nos descobrimos e vamos construindo. Não sem alguma dor. Não sem sofrer o óbulo que a vida demanda de todo aquele que, pela verdade, escolhe o amor como caminho, olhos nos olhos, mãos dadas… e a voz… a voz continua a incomodar, mas a vida… a vida é assim mesmo. Sorrisos ininterruptos jamais indicarão sentimentos reais.

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