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Carruagem

Findo o ato de sublimação, alternado o caso de recepção, alhures me
chamava Ariadne, indiferente às perturbações que fingia possuir, eu que não possuía a mim mesmo já havia uma data… o Sol daquele dia queimava o papel do sorvete mais do que minhas narinas e ainda mais do que minhas ideias acerca de sua provável extinção. Saber que algo superior a mim mesmo, em duração, se extinguirá, também é relevante, mas acredito que não tanto para os profissionais do mercado, do marketing; por exemplo, os fabricantes de sorvete.

Andava sozinho e a esmo; tropeçava em mim mesmo e lembrava de Ariadne balbuciando os seus senões longe de meus ouvidos, para que eu não entendesse e ainda me submetesse mais à sua simulada altivez. Ela falava sem parar e falava naquele momento de sua mãe, de como era uma exímia jogadora de xadrez e cheguei a pensar que aquilo fosse uma metáfora, estranhamente porque estávamos no ônibus que seguia rumo a um lugar de onde nunca deveríamos ter saído, porque eu não o conhecia e ela tivera a coragem de me fazer ter coragem – o que ela pensava ser uma influência – de ser menos ignorante a meu próprio respeito. Quanto carinho e quanta petulância!

Sete músicas me entretinham.  Sete livros passavam em minha pele,
porque os lia diariamente e em partes; Leibniz, Platão, Luis Fernando
Veríssimo, Lao Tse, Goethe e…  Que engraçado o pensamento de que a
morte acaba com a cultura, porque a cultura é alguma coisa que parece
existir para que nos curemos dela.  Ou como diz o provérbio latino
acerca da arte, a arte existe para esconder a si mesma.  Como a curiosidade para o conhecimento, a arte é um paradoxo, colocada diante de um espelho.  Admira-se de si mesma, critica seus pormenores, ajeitando os cabelos e sentindo o próprio perfume no pulso.  Ajeita-se no tempo, escolhe as cores e os modos; finge palavras, arremata coisas, mata personagens e vive estribilhos nos silêncios que se imprime… como Ariadne…

Rasgam os céus os últimos relâmpagos de novembro e o meu suspiro se associa a isto me dando saudades;  fogem as carícias, os aromas, as
flores.  Sinto-me só.  Pareço sentir gosto de sangue.  O sabor me dá alguma companhia e raspa música na pele e minhas mucosas me lembram de Leibniz.  Dançam os fantasmas.

Acordo do sonho de outrora.  Ariadne me diz que não existe e eu lhe dou de ombros, saudando o Sol com a tristeza dos guerreiros em paz.

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