Era noite. Lélia Gonzalez e suas falas fomentavam meu desejo de escrever. Decidi assistir a entrevistas feitas com ela para ter uma tempestade de ideias. As horas passavam; a tempestade, de fato, eclodiu e, com esse fenômeno natural, meu desejo de criar esta crônica surgiu. Aqui estou, Lélia, mulher cuja trajetória se liga à minha vida, à minha profissão, à minha luta por igualdade!
Como pesquisadora, li que, segundo o IBGE (2019), o Brasil é composto por 56% de população negra e parda. Tal dado seria o suficiente para que fosse inadmissível intensa discriminação racial. Ledo engano, caros leitores! Surge a pergunta: por que uma quantidade maior de melanina, um pigmento escuro que protege o tecido da luz ultravioleta, é fator de tanto preconceito? Há, sobre esse questionamento, a voz de Lélia. Não à toa, Lélia, uma das fundadoras do Movimento Negro Unificado (MNU), alardeava suas reflexões sobre o feminismo negro, já que ser mulher e negra resulta em uma condição socioeconômica aquém da maioria. Negras precisam, pois, de alguém que as defenda. “Eis-me aqui, Lélia!”
Como a maioria das famílias brasileiras, sou parte de uma em que há pluralidade racial. Uma parte “puxou” vovô Alucínio, um negro que se casou com vovó Palmyra, uma loira de pele alva e olhos verdes. Do casamento deles, nasceu minha mãe Marly Margareth. Herdei o fenótipo de vovô e, por isso, sou uma negra mulher, minha cara Lélia, e levo a questão racial para o campo do trabalho! Como você, sou fruto de episódios vividos por quem carrega a ancestralidade africana. Por que tanto racismo? Sei que também sofreu bastante, Lélia! Será que somos “gauche na vida”, já que nossa tarefa é “levantar bandeira” como declamou Drummond em seu Poema de Sete Faces? Coube-nos militar diariamente para combater práticas que ainda ferem e entristecem muitas de nossas negras meninas.
Nesse combate ao preconceito racial, entrelaço-me à singular Lélia. Será a ação do “anjo torto, desses que vivem na sombra”, e que disse “Vai, Lélia, ser gauche na vida!”. Paráfrases à parte, a situação é extremamente séria e carece de muita atitude; pois, embora muito já tenha mudado, há atitudes que camuflam o preconceito racial em nossa sociedade, tão miscigenada! Uma vez mais, comungo com Lélia a decisão de lecionar. Que honra poder plantar a semente de um futuro mais igualitário entre os adolescentes! Que privilégio fomentar o debate, a reflexão e a ação de cada um em prol da questão racial e do feminismo afro-latino-americano! Fernanda Lessa, coautora do livro As faces de Lélia Gonzalez em mim, 2023, Coleção Mulheres do Ler IV, Metanoia Editora